BRASIL, ONDE AS SARJETAS AGLOMERAM CORPOS COMO DEJETOS

Terra tomada por uma burguesia que envolta pela fantasia de ser elite não vê nas calçadas espaço suficiente para dividir com os pobres

Ana Beatriz Rocha
Revista Subjetiva
4 min readJan 6, 2021

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Foto: Reprodução/jornaldaorla.com.br

O verão brasileiro não tem igual, há os que dizem. O calor inebriante só cessa com cerveja gelada, belas praias e as companhias perfeitas para curtir a estação mais quente do ano. Dessa vez as altas temperaturas estão mais densas, pesam nas costas de quem carrega a culpa de ser irresponsável frente ao caos. No Verão 2021 os altos índices são também os de morte, desemprego e instabilidade econômica.

Dia desses expus meu privilegiado corpo ao sol. Ócio, na terra das discrepâncias, é sinônimo de não precisar vender cada segundo do seu tempo em troca da possibilidade de existir. Num dia de folga, direito que o capital tornou privilégio, decidi ir à praia me banhar de boas vibrações pro novo ano. Naquela noite vi nas ruas um perigo que me faria temer o transporte público, por isso decidi pedir um carro de aplicativo.

Na espera da carona paga, em frente a um famoso food park na caríssima orla pessoense, avistei um menino. Nas mãos carregava jujubas, doces vendidos por uma criança que merecia se preocupar apenas com os doces disponíveis para o seu deleite. As roupas gastas denunciavam que a moda pouco tem de democrática. Jovem demais pra ser maltratado, preto demais para ser visto. E na balança desigual a classe média escolheu ignorá-lo.

Por alguns minutos vi a cena se repetir. Famílias, casais, homens, mulheres e idosos, todos desviaram a rota do menino invisível. Gente que se sentia limpa demais, bonita demais, inteligente demais, endinheirada demais. De menos, ali, apenas a capacidade de ver os “brasis” para além dos muros do condomínio. Este país é tomado por uma burguesia alienada e alienante, que envolta por uma fantasia de elite não vê nas calçadas espaço suficiente para dividir com os pobres. Pobres esses que são mantidos na sarjeta pela incapacidade dos burgueses de limpar sua própria casa.

O ano do fim

Num país onde a corda estava no pescoço do trabalhador assalariado e dos desempregados, a pandemia foi o enforcamento. Como explicar as milhares de pessoas nas ruas se revezando entre pedir emprego e implorar por comida? As esquinas estão repletas de famintos de um Estado que ofereça o mínimo. Em janeiro de 2021, as sarjetas brasileiras aglomeram os corpos vistos como dejetos pelo Governo Federal.

O pré-2018 muito se distanciava da perfeição. O antigo normal era um observatório de desigualdades. É de um esforço sacrificante a experiência de imaginar um Brasil horizontal, um país onde para algumas “moças de família” se formarem em medicina não existam corpos pretos submetidos a escravidão moderna, que pouco se destingue daquela que explorou nossos ancestrais.

No entanto, nos últimos anos, a política nacional tem pressuposto um desmonte. Largada às traças as tentativas passadas de limpar, superficialmente, o piso imundo deixado pelo regime militar. Não há mais faxinas, todos os dias a casa é deteriorada um pouquinho mais antes do abandono. Em 2020 todas as esperanças foram tomadas de assalto. Levadas por uma certeza de despreparo, má vontade e projeto genocida.

Como um catalisador de catástrofes, a pandemia piorou todos os cenários negativos do Brasil. Só me cabe esse lugar de fala, o lugar de cidadã brasileira. Este lugar tem sido, consideravelmente, mais doloroso para certos grupos sociais. É como se fosse feito um corte, todos os dias, em quem tem a carne barata demais para o mercado, e no fim do processo esses corpos pobres fossem quase peneiras velhas, incapazes de agarrar alguma chance de subsistência.

A pandemia não mata apenas com a transmissão da Covid — 19. Ela mata de fome, de sede, de falta de dignidade. Ela aniquila as projeções. Ela nos prende no hoje. Na recusa dos ideais meditativos de viver o presente, para quem sustenta esse país com a força de trabalho e dela depende para sobreviver, o hoje não é suficiente. O amanhã é essencial para a conta fechar, ainda que zerada num ponto de equilíbrio. E o saldo está negativo.

E então falam de vacina, no fim do túnel uma fresta de luz capaz de retirar milhares da esteira da morte a conta gotas. De guerra política a mutação genética, a salvação do pobre ao cidadão médio é adiada por um governo incapaz de ser condizente com a própria fala. No início da pandemia, quando governadores falavam em fechamento total em prol do isolamento, o Presidente Jair Bolsonaro levantou a bandeira da economia, afirmou que o foco precisava ser a geração de empregos e um lockdown (palavra estrangeira para “todo mundo em casa”) atrapalharia tudo.

Em janeiro deste ano, em um país devastado pelo vírus, pela fome, pelas sarjetas lotadas e geladeiras vazias, a única alternativa capaz de reduzir danos imediatos é a vacina. Para além dos limites sanitários, a substância se põe como estratégia de mercado, de uma continuidade de país. E o mesmo homem, que um dia falou sobre focar na economia, não move um dedo para tirar o Brasil da miséria. Num mar de contradições, o desenho que vai ficando nítido no horizonte sociopolítico é o prazer de Jair pela desgraça em solo verde e amarelo. No pós pandemia, o lema aparente é caos acima de tudo, e destruição acima de todos.

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Ana Beatriz Rocha
Revista Subjetiva

Jornalista, escritora independente e em eterno flerte com a poesia. Cada fragmento estanca a ânsia por liberdade que há em meu peito.