Breves entrevistas com homens hediondos e a experiência de ler David Foster Wallace

Leandro Marçal
Revista Subjetiva
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4 min readDec 27, 2019
Foto de Achados & Lidos

Não é frase de efeito ou estratégia para atrair mais cliques com um título chamativo. Ler David Foster Wallace é daquelas experiências difíceis de ser explicadas. Cada vez que atravesso estradas longas, como a deste Breves entrevistas com homens hediondos, me pergunto os motivos para as editoras brasileiras não se esforçarem mais para traduzir toda a obra do estadunidense norte-americano falecido em 2008.

Se você tiver a disposição para encarar os escritos de DFW, é melhor se preparar. Neste caso, esqueça as formas mais convencionais dos livros de contos que já leu. Não é exagero. José Rubens Siqueira teve a difícil e gratificante missão de traduzir o original Brief Interviews with Hideous Men, publicado nos Estados Unidos em 1999. No Brasil, saiu pela Companhia das Letras em 2005 e reimpresso em 2016.

Ao longo de 373 páginas, temos à disposição 19 contos, intercalados por quatro blocos das breves entrevistas que intitulam o volume. Tais blocos variam entre 20 e 46 páginas cada e são diálogos em cenários cotidianos. Mas só podemos ler o que um dos personagens fala. Em alguns casos, só as perguntas, em outros, só as respostas. Não que haja alguma perda com o recurso narrativo usado por DFW: ficamos mais e mais instigados a saber até onde aquele personagem hediondo vai na conversa pitoresca, nos fazendo alternar entre o estranhamento e uma incômoda identificação.

As tão conhecidas notas de rodapé gigantescas das obras de DFW estão ali mais uma vez. E adianto: leia todas. São importantíssimas, não se tratam apenas de explicações dispensáveis, créditos ou explicações de datas antigas, ainda que vez ou outra o autor também use disso. Em “A pessoa deprimida”, meu conto favorito do autor, ele narra de maneira angustiante como as sessões de terapia com uma psicóloga reticente e um grupo criado para desabafos pessoais levam a protagonista a um buraco sem fim. As notas compõem uma subtrama de tirar o ar.

Como também é de se prender a respiração o conto “Sem querer dizer nada”. Seu conflito: o protagonista se distancia da família depois de uma lembrança, que ele não sabe dizer se é real, do pai passando o pênis em sua face. Sério! Sem ser leviano com um possível tema seríssimo e traumático, DFW nos empurra dentro em um labirinto sem mapa para sair de lá.

Os títulos dos contos merecem menção. “Uma história radicalmente condensada da era pós-industrial” é curtinho. O conto, no caso. Menos de uma página. Alguns se repetem, como “Mais um exemplo da porosidade de certas fronteiras”, “Adult World” e “O diabo é um homem ocupado”. Bem, há o “Em seu leito de morte, segurando sua mão, o pai do novo aclamado jovem autor da Off-Broadway implora uma bênção”, que ao lado de “Octeto”, forma o pódio dos meus favoritos, com o já mencionado “A pessoa deprimida”.

Por falar em depressão, o tema é presente em toda a obra de David Foster Wallace, que lamentavelmente não resistiu a ela há pouco mais de uma década e deixou o incompleto O Rei Pálido como romance a ser publicado (alô Companhia das Letras, cadê a tradução que você anunciaram há tanto tempo?). A forma como ele toca no tema neste ou naquele conto é forte e por isso conhecer seu estilo é como calejar o estômago para o soco forte que está por vir. Sua vida é retratada no filme A última turnê.

A escrita de DFW é exigente. Muita gente se intimida, por exemplo, com as mais de mil páginas de sua obra-prima, Graça Infinita, publicada em 1996 nos Estados Unidos como Infinite Jest e cuja tradução de Caetano Galindo chegou ao Brasil pela primeira vez em 2014. Um livro fragmentado e desafiador, desses que precisamos de um bloquinho com anotações para não nos perdermos no meio do caminho.

Se quiser se aventurar na obra de DFW, mas tem algum receio de mirar a imensidão de textos tão exigentes, sugiro começar pela coletânea de ensaios Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo, com tradução de Daniel Galera e Daniel Pellizzari, publicado no Brasil pela Companhia das Letras em 2012. É possível que você já tenha se deparado pela internet com seu discurso “Isto é água”, um daqueles textos fundamentais para encarar a vida adulta.

É um bom começo e preparação para mergulhar na ficção Wallaciana, com suas incursões psicológicas, notas de rodapé extensas, angústias e obsessões caóticas. Ninguém termina de ler David Foster Wallace do mesmo jeito que começou. E eu espero que, ao fim dessas mal-traçadas linhas, você vá atrás de um livro de David Foster Wallace e embarque na viagem memorável de seus livros que eu li, releio e releio e releio com a esperança de ter alguém para conversar sobre tanta coisa nas linhas ricas, tortuosas e cheias de notas de rodapé.

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Leandro Marçal
Revista Subjetiva

Um escritor careca e ansioso. Autor de “De Letra: o futebol é só um detalhe” e “No caminho do nada”. Cronista no Tirei da Gaveta (www.tireidagaveta.com.br).