Carta de um cliente gay à SmartFit;

Melhor fazer aquele aquecimento básico antes de clicar!

_erinhoos
Revista Subjetiva
7 min readJan 29, 2019

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Edit: Atenção, este não é um texto sobre pegação ou que faz apologia ao sexo em lugares públicos, mas sim que problematiza a solução que a SmartFit adotou para lidar com essa questão, e que poderia ser outra, menos unilateral e mais baseada no diálogo aberto com a comunidade LGBT, sobretudo considerando que há muitos gays que treinam nessa academia, e que ela lucra cada vez mais com a abertura de franquias em zonas rosas e adesão de público com programações gay friendly como o fitdance.

Edit II: Leia a resposta do autor à repercussão nas redes sociais.

Edit III: Assista à resposta do autor.

Edit IV: Se você esperou até agora pra aparecer, faça o favor e dê streaming pro meu som no Spotify ou no YouTube — ou pesquisa mEros Erros nas outras plataformas de streaming e redes sociais.

Oh SmartFit! Essa entidade que me acompanha há quatro anos pacíficos. A minha predileta é a da rua Augusta porque é uma academia bem gay e bem gay friendly. Supostamente.

Duas fotos: uma que circulou na rede uns meses atrás e outra cujo registro eu testemunhei pessoalmente este ano.

Bom, minhas definições de amigável foram recentemente atualizadas.

Demanda por diálogo: Um pouco mais do que as aulas de fitdance

Cara SmartFit, sabe o botão, você sabe, o botão pra condutas inapropriados, você sabe, vai, não são condutas inapropriadas, vamos falar com todas as letras, é SEXO ENTRE HOMENS NAS DEPENDÊNCIAS DO LAVABO.

Sejamos adultos, SmartFit, a maioria das pessoas que te frequentam é maior de idade, não precisamos de eufemismos e meias palavras. Mas vamos lá, temos um problema: a conduta inapropriada (um sinônimo formal de uma tipificação de contravenção penal — ato obsceno), comumente chamada de safadeza por uns e pegação por outros (e feita escondida, porque “não pode”, e porque não é feita apenas entre gays, mas entre homens no geral, que se consideram gays/bi ou não).

Bem, se o problema é esse, então, vamos lá: A quem e o que lesa a pegação escondida e consentida? O bom gosto? A hipertrofia muscular? A definição? Ou a sensação de controle total sobre as incontidas pulsões da virilidade masculina?

A pegação eu não sei, mas os efeitos mais nefastos da homofobia, pelo contrário, já são conhecidos e infelizmente têm resultados cada vez mais visíveis e frequentes. Só tremendos boçais hoje em dia creem que não há homofobia (embora estejamos rodeados de boçais o tempo todo). E antes que as supostas vítimas da “heterofobia” (um substantivo feminino, oh) acionem uma certa ideia de que há assédio dentro da academia, já devo me adiantar que não dialogo com lágrimas de ego masculino mimado, mas a partir de dados, como a experiência da visibilidade gay e as estatísticas que indicam ininterrupto crescimento de mortes LGBT por crimes de ódio.

Minha predileção pela musculação como esporte tem relação direta, aliás, com o fato do assédio homofóbico durante jogos coletivos na infância ter sido sistemático, contumaz e traumático.

E com o pornô também, talvez.

Voltemos ao botão inapropriado, enfim.

Cara SmarFit, um tal dispositivo não promove e não promoverá nenhuma simetria e, eu ousaria dizer, nenhum apelo à ordem, ao equilíbrio e à harmonia entre utentes. Antes, trata-se de uma renúncia ao diálogo, uma forma autoritária de fazer valer um poder unilateral, cujo efeito é o de criar um ambiente constrangedor, policialesco, de hiperfiscalização entre os corpos, um regime de instauração do medo sobre o gesto, uma verdadeira tristeza, inclusive para os héteros, que são instados a atuarem no pior de seu papel socialmente chancelado de juízes da norma.

SmartFit, que feio supor que nós, gays que treinamos, não tenhamos capacidade de manter um diálogo aberto sobre sexualidade, justo nós, que não agimos como adolescentes neopúberes toda vez que uma mulher atraente atravessa a galeria. Ou vocês acham que nós não ouvimos todas as merdas machistas que vocês fraternamente falam perto de nós porque, referenciados pelo estereótipo do gay afeminado, não percebem que estão cercados deles, de nós, dessa verdadeiramente fraternidade gay dos olhares? Então, toda vez que eu ouvir um comentário misógino e homofóbico, estarei igualmente autorizado a apertar o botão da inapropriação?

“Então, é esse, esse mesmo, ele fez um comentário inapropriado, já chegou chamando fulano de viado”. “Sabe o que é? É que esse cara fica olhando para essa guria de maneira bem…inapropriada”.

Ou melhor:

“Boa noite, este homem gostoso está inapropriadamente pedindo para ser assediado com esse enorme músculo dentro da Red Nose”. “Hey, sr. instrutor, este homem está usando uma cueca de algodão branca cavada; não é uma peça de roupa inapropriada demais para o verão de 2019?”.

Ou será, SmartFit, que é você que não sabe dialogar?

Ouça no Spotify ou no seu agregador predileto de PodCasts o episódio do Podcast Animais Taxidermizados sobre Cancelamento.

Uma SmarFit “Legal”

É, infelizmente o caminho do diálogo nem sempre é mais valorizado. Em 2013, o Autorama, área tradicional pública de encontro da comunidade LGBT em São Paulo, após inumeráveis contendas institucionais, foi finalmente fechado. Alegava-se na época que o estacionamento do parque Ibirapuera, que se mantinha aberto ao longo das madrugadas, era palco de importunações ofensivas ao pudor e atos obscenos (fatos lastreados por vários registros de boletins de ocorrência).

Em 2015, a proposta d’O Autorama Legal emergiu a partir da atuação de uma “comitiva” suprapartidária de militantes como uma resposta criativa, exequível e interessante, uma proposta da sociedade civil para levar a sério uma demanda: o fato de que a comunidade LGBT no parque estava sendo alijada de um sítio histórico, uma ilha de tolerância e festa, que tinha alto valor patrimonial e comunitário. Além do quê, o entorno do antigo Autorama continuava sendo utilizado, o que tornava a sociabilidade do lado de fora muito mais perigosa (fato que pode ser atestado com a trágica morte de um jovem gay em 2014).

Fato é que o jogo de forças do Conselho Gestor do parque Ibirapuera, formado na época por uma supremacia branca e masculina de cidadãos-consumidores que tratavam certas matérias do parque como se este fosse o quintal oficial dos bairros adjacentes, infelizmente não foi favorável à reabertura da área; — um patrimônio importantíssimo para a comunidade LGBT enterrado vivo em meio à zombaria. (Para saber mais sobre esta história, acesse aqui ou aqui.)

No final das contas, na prática, dentro e fora da “comunidade LGBT”, a pegação é menos um patrimônio e muito mais uma marca de processos massificados e violentos de subjetivação em contextos modernos e urbanos. A sacada genial d’O Autorama Legal, nesse sentido, foi apostar na visibilização dos “problemas” da convivência com a diversidade como um ponto de partida para a reconstrução de um ambiente público plural. O que estava tentando se negociar não era o “direito à pegação”, senão a conversão de uma contenda pública em direitos à dignidade e à identidade — um bem público, visto que tod@s sairiam ganhando.

A proposta era muito boa e, no entanto, não foi considerada prioridade. E você, SmartFit? Vai continuar apostando também na hipocrisia? Na negligência do reconhecimento de que há diversidade sexual e de gênero entre seus clientes? Bom, meus amigos gays e eu sabemos que o seu dono há tempos explicita o apoio ao nosso atual presidente (aqui e aqui), sabidamente um sujeito que nutre por nós LGBT, no mínimo, desprezo ativo. É bem o tipinho desse empresariado mau-caráter procurar oportunidades nas zonas arco-íris das grandes cidades, implementar aulas de fitdance e o escambau e, ao mesmo tempo, promover essa política maldita do inaudito, apoiar presidente homofóbico etc. (E eu conheço um conceito que resume tudo isso: pink money!)

Olha, foi muito difícil arranjar uma imagem adequada (fonte). Era isto ou um frame de um clipe do Cazwell.

O que está em questão aqui senão poder gozar com simetria da mesma infraestrutura, das mesmas dependências, da SmartFit Radio (que toca até Anitta, viu?), da cultura besta das palavras técnicas (quadríceps, isometria etc.)? — que os amigos que não treinam detestam — etc. etc.?? A partir da implementação da política do “botão inapropriado”, passam a existir não apenas homens e mulheres na academia (posto que a diferença de gênero é dada e estrutural), mas entre homens-públicos-de-comportamento-apropriado e homens-duvidosos-de-comportamento-inapropriado, sendo que estes últimos passam a ser vigiados. E, conforme argumentei, uma vigia contra a inapropriação é uma vigia panóptica contra todos, visto que rompe a fraternidade e empobrece o gesto e a diversidade. E se começa assim, com um botão, sabe-se lá como termina…

Cara SmartFit, a academia à qual tenho sido fiel, a academia inteligente (diz seu slogan, risos), que completa somente dez aninhos em 2019: Pare que tá feio! Nós, gays que treinamos, espalhados pelo Brasil inteiro, estamos abertos e dispostos ao diálogo. Se, ao renunciar ao diálogo você admite não confiar nos gays, fique sabendo, pois, que não dá pra confiar num ambiente que estimula a cisma da fraternidade e formas veladas de homofobia. Nós, gays e bi adultos, que ajudamos a bancar esta rede, que fazemos esteira, levantamos peso e treinamos fitdance, assumidos ou não assumidos, discretos ou indiscretos, exigimos sermos tratados com respeito. E nós, que somos adultos, já temos idade para manter um diálogo, que é a condição indispensável para qualquer relação que envolva respeito mútuo, simetria e confiança.

No mais, o de hoje tá pago.

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_erinhoos
Revista Subjetiva

_antropólogo, barista informal, errante incorrigível, cantor de karaokê, sérião nas horas vagas