Catástrofe: quando o mercado encontra a pandemia
Desde que o mundo é mundo ele nunca foi brinquedo.
Enquanto uns choram
Se apressam pra vender o lenço
Isso nunca foi segredo.
Te vendem remédio, plano de vida
Especulando com seus medos.
Nos livros Sagrados já tava escrito a muito tempo
Qual vai ser a desse enredo, até o final
(…)
O trecho da canção acima, O Mundo (Panela de pressão), cantada por Bnegão e os Seletores de Frequência, descreve uma situação que parece inerente a existência humana: sempre tem alguém tirando vantagem de uma situação ruim. Em tempos de pandemia, uma olhada ao redor parece confirmar tudo isso.
Em um livro de 2007, A doutrina do choque, a jornalista, ativista e pesquisadora Naomi Klein expõe o que ela chamou de capitalismo de desastre. As situações de crise são oportunidades de negócios para especuladores, grandes corporações, “investidores” que aparecem proferindo o discurso de que é preciso aproveitar o momento para realizar as mudanças necessárias para garantir o melhor para a população.
Esse discurso seria um disfarce para o real objetivo de aproveitar a oportunidade para entregar ao mercado tudo: saúde, educação, empresas estatais. O Estado ficaria com a função de garantir as “condições ideais de temperatura e pressão” na sociedade para que nada ocorra fora do planejado. Exemplos não faltam na história contemporânea e a autora registra, entre outros, o golpe de Pinochet no Chile, o fim da União Soviética, o 11 de setembro de 2001, a guerra contra o Iraque, o furacão Katrina e as suas repercussões em Nova Orleans.
Em todas elas, um aspecto se repete: a inserção de políticas neoliberais em vários setores importantes da vida social. Segundo Klein, esse capitalismo de desastre aproveita o choque causado pelas catástrofes (naturais ou políticas) para implantação de sua agenda contrária aos direitos básicos, humanos e historicamente estabelecidos. É aqui que se insere a doutrina do choque: o abalo emocional e físico que as populações sofrem facilitaria essa implantação.
Aqui no Brasil, o SUS está, com grande esforço, salvando vidas na contramão do que desejavam alguns setores da sociedade e mesmo representantes políticos eleitos para atender às necessidades da população. A forma como as chamadas autoridades brasileiras lidaram (ainda lidam) com a saúde pública revela a política da morte (necropolítica, para citar o conceito desenvolvido pelo filósofo camaronês, Achille Mbembe) que define qual vida deve ser extinta.
Como não pegaria bem as autoridades assumirem que querem a morte dos corpos indesejáveis das populações empobrecidas, então é só deixá-las morrer através de cuidados mínimos e insuficientes. Não morrer passou a ser (sempre foi) um ato de resistência, de combate por parte dessas pessoas.
Quando o mercado encontra a pandemia, o que se pode esperar? Longe de exercer futurologia, mas, procurando pensar a partir de comparações com situações parecidas em outros tempos e lugares, veríamos a ampliação da precarização do trabalho em nome do restabelecimento da economia e o fortalecimento das propostas de privatização de serviços públicos e mesmo ataques contra instituições democráticas.
Ainda pensando no caso brasileiro, com o atual presidente que já expressou várias e extravagantes vezes que o país é ingovernável por causa do congresso, dos comunistas, dos inimigos da nação etc., então não parece exagerado colocar no horizonte de possibilidades o fortalecimento do discurso de fechamento político, o que seria eufemisticamente denominado de “remédio amargo” para lidar com a desordem.
Por outra perspectiva, quando a pandemia encontra o mercado, o resultado desse encontro pode ser a ruína do neoliberalismo a partir do fortalecimento e do aparecimento de outras formas de organização social. A ação do SUS nessa crise, contra todas as vontades a favor do fim do Sistema Único de Saúde, pode contribuir para criação de uma resistência maior contra seu sucateamento e extinção.
A forma de vida neoliberal está sob pressão. A utopia do livre mercado, da qualidade dos serviços privatizados se provou ineficaz e contrária a manutenção da vida. Esse texto termina com Bnegão e os Seletores de Frequência mandando o recado:
(…)
O monstro é grande sim
Mas não é invencível
Pois esse império é artigo perecível
Defenda o SUS. Defenda a vida.
Referências:
KLEIN, Naomi. A Doutrina do Choque — A Ascensão do Capitalismo do Desastre; Nova Fronteira, 2008.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018.