“Circe” e uma nova visão da mitologia grega

Carol Vidal
Revista Subjetiva
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3 min readApr 10, 2020
Foto: Carol Vidal

Existem aos montes narrativas tendo a mitologia grega como inspiração. Normalmente focada nos homens, elas contam dos grandes feitos desses seres poderosos, contra os quais não há quem ouse fazer alguma coisa. Mas Circe, de Madeline Miller (lançada no Brasil pela Editora Planeta Minotauro com tradução de Isadora Prospero), oferece uma outra visão, dando o protagonismo (merecido) para que uma mulher conte sua própria história sem ficar limitada à visão machista dos homens.

A obra narra a vida de Circe, filha de Hélio, deus do Sol, e da ninfa Perseis, que, desde pequena, parece não se encaixar naquele mundo ou ter herdado qualquer poder do pai. É no contato com os mortais que ela descobre que tem o dom da feitiçaria, o que assusta Zeus, que decide que ela deve ser banida para uma ilha deserta.

Um dos destaques do livro, como disse acima, é dar voz à personagem para narrar sua vida sem a influência de uma visão de fora. E, por ela destoar do mundo dos deuses, temos a oportunidade de ver esses seres por um outro ângulo — muito menos bonito do que o pintado nas histórias.

A leitura permite, portanto, um olhar diferenciado para as tão batidas histórias da mitologia grega e seus deuses implacáveis — aqui, eles são representados sem apagar sua ganância, suas intrigas e suas crueldades. É um relato cru, que combina muito com a personalidade da narradora.

Circe, inclusive, é uma personagem que aparece na Odisseia, poema épico de Homero, do qual ela desdenha em vários momentos, o que é bem divertido, pois ela é retratada como uma mulher subserviente, bem diferente da personagem que conhecemos quando ela mesma conta sua história. E não pense que há romantização por ser uma narração em primeira pessoa: ela é bem sincera sobre seus erros e arrependimentos, mas vemos o crescimento dela ao longo da leitura, tornando-se mais confiante e senhora de si.

Por meio de toda a trajetória da vida de Circe ao longo das eras, também podemos acompanhar as várias facetas do machismo: desde dentro da família, até a marinheiros que achavam aceitável invadir a ilha de Circe e proporcionar todo tipo de violência somente porque ela é uma mulher vivendo sozinha. Esses ciclos de machismo acontecem de forma escancarada, mas também nas entrelinhas, que vamos percebendo ao longo da leitura.

“As colinas e árvores diante de mim, as minhocas e os leões, as pedras e os botões tenros, o tear de Dédalo, tudo oscilou como um sonho se desfiando. Por baixo deles ficava o lugar onde eu realmente morava, uma eternidade fria de luto infinito.”

A visão que Circe tem da mortalidade também é digna de atenção. A todo momento, ela relata a vida enfadonha e repetitiva dos deuses, tediosa em comparação às realizações e os perigos que a vida de um mortal proporciona. Os deuses, apesar de não morrerem, não são tão vivos quanto os mortais, na visão da protagonista. Além disso, não morrer e ter contato com mortais é viver uma eternidade de perdas. Mais uma vez, um ponto de vista diferenciado sobre os deuses.

Apesar do que se pode esperar de narrativas desse tipo, o foco do livro não é a ação. Então, fica o aviso: se você for ler procurando isso, vai se decepcionar. A obra é incrível pela construção das personagens. Cada uma tem um tratamento cuidadoso para serem profundas. Mas não se engane achando que é um livro parado: as páginas voam porque você quer saber logo o que vai acontecer com aquelas personagens que você aprendeu a se importar.

É muito interessante também a forma como a magia é tratada no livro: não como algo “do mal”, mas uma mistura de ciência e força de vontade. Portanto, a magia, em si, não é boa nem má; vai do uso que cada pessoa faz dela — e há exemplos disso no livro. Mesmo assim, as pessoas têm medo de Circe por conta do poder que ela possui, o que evoca séculos de histórias de mulheres perseguidas por serem acusadas de bruxas.

Circe é daquelas leituras impossíveis de esquecer. Sei que ainda vou falar (e recomendar) muito esse livro, pois ele me marcou verdadeiramente pela história poderosa (com o perdão do trocadilho) e pela potência de seu discurso. Esse livro é a prova de que é sempre possível contar uma história de forma diferente.

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Carol Vidal
Revista Subjetiva

Carioca que mora em Salvador. Escritora e podcaster que ama cozinhar (palavras e comidas). Conheça meu trabalho: linktr.ee/carolvidal_