Como deixei de ser bicha poc-poc da Vieira e me tornei gay da Frey Caneca
Na segunda metade de 2011 eu era segundanista de Ciências Sociais. Por ocasião de uma disciplina de metodologia qualitativa, passei a visitar periodicamente o Largo do Arouche, aos domingos, com duas colegas, norteado pelo objetivo compartilhado de realizar um trabalho de campo. Tratava-se de um expediente em que se reuniam jovens bichas e lésbicas, sobretudo de bairros mais pobres e afastados do centro, em uma comunhão marcada pelo barulho, pela exuberância e pelo afeto visível (aspectos que nem sempre são flagrados nos quinhões menos privilegiados da metrópole).
Em pouco tempo de frequência passei a me sentir absolutamente em casa no perímetro do logradouro, dada a familiaridade com o tipo de evento que encontrava eco na minha biografia afetiva — havia um “encontro” muito parecido que ocorria perto de casa, no Tatuapé, às segundas-feiras, e que eu frequentara no último ano do colégio.
De fato, minha ligação com o Arouche se tornou tão intensa a ponto de repetir com frequência: “esta é minha primeira casa, a outra fica no Tatuapé”. Incontáveis vezes passei madrugadas flanando pela Vieira, saindo das baladas da Vila Buarque, passando pelos cinemões da praça da República e terminando na lanchonete 24 horas da esquina da São João com a Ipiranga — antes de pegar o metrô, numa época em que Uber e ônibus de madrugada ainda não eram uma realidade.
Naquela época eu nutria um certo desprezo pelos ambientes de classe média que a vida universitária me indicava serem concernentes à minha postura de estudante da USP. Mas isso é porque minha hexis de emergente, somada à minha experiência pouco inclusiva no colégio, não se mostravam heranças propriamente compatíveis com o desprendimento arrojado das baladas de Pinheiros. Estas eram para mim espaços muito áridos, habitados por bonecos blasé, que cruzavam por mim como alguém distraído que subitamente se afasta de um poste com o qual não quer colidir. Eu não cultivava apenas desprezo, portanto, mas também ressentimento. Ao menos nos encontros dominicais do Arouche — ou às segundas no Tatuapé — eu era passível de ser desejado.
Conquanto eu há um bom tempo morasse em um bairro de classe média do centro expandido, minha “iniciação homossocial”, assim, se deu nesses encontros. Foi circulando entre e através desses grupelhos de bichas periféricas esguias e barulhentas que, pela primeira vez com a maior das convicções, subitamente descobri que era gente.
Um fato, a princípio contraditório, me gerava ansiosa curiosidade quando realizava trabalho de campo nesses espaços. Ainda que alguém frequentasse com contumácia o largo e suas adjacências, era comum que se sustentasse um discurso valorativo pejorativo acerca do espaço e das pessoas que o construíam.
Olha isso aqui! Muita promiscuidade! Muito barulho! Muita bicha poc-poc! Não gosto daqui não!
E lá estava o mesmo rapazote na semana seguinte, agindo exatamente da forma que ele dizia reprovar.
Demorei alguns anos — inclusive após ter feito trabalho de campo em lugares de pegação, onde a valoração negativa da prática concorre e convive igualmente com a apropriação positiva do espaço — para admitir que não havia nada de contraditório nisso tudo. Por um lado, sustento que esse discurso pode se pautar por uma esperança redentora naquilo que está por vir; um espaço cândido e perfumado, destinado àqueles dentre tantos que serão laureados pelo testemunho de uma conquista: a concretização da promessa de um espaço relevante na população economicamente ativa da metrópole.
Por outro, ele representa a condensação impossível de uma liberdade de agência branca e de classe média; essa suposta disrupção entre prática e discurso não é nada ingênua. É como se me dissessem por meias palavras “esta cova em que estou com palmos medida (…) é a parte que me cabe deste latifúndio”.
Recentemente fui ao Bar Verde, uma dessas baladas de bicha poc-poc, e então percebi de repente, e da pior forma, que eu havia me tornado mais um daqueles bonecos blasé que habitualmente rechaçava: me flagrei apontando contrastes entre índices de civilidade.
Argh! Esse povo é mal educado, esbarra, derruba bebida em cima de mim, já chega puxando querendo beijar, que inferno!
Assim, me vi reproduzindo parte das convenções que atribuía ao reacionarismo daqueles gays “integristas”, as barbies da rua Frey Caneca. Assim, aparentemente cumpri parte da profecia de acordo com a qual um dia eu ingressaria no reino da redenção trazido pela maturidade e pela estabilidade financeira. Para ser menos eufemístico: foram anos de investimento profissional, corporal e estilístico, que resultaram de forma quase involuntária no traslado da República retrógrada e tardiamente adolescente para a Bela Vista moderna, madura e adulta.
Essa Bela Vista, contudo, se perde e se reencontra dentro da miríade de contradições que lhe são próprias. Existe um limite tênue entre o encontrão ruidoso da rua Peixoto Gomide (onde também fica o Bar Verde) e o close discreto do bar da Loka, na Frey. E é, para mim, como se, ao longo de dez anos de carreira gay, eu lentamente tivesse cruzado de um ponto ao outro da esquina Frey X Peixoto. São dois mundos, porra! De uma calçada a outra se edificam fronteiras sociais — que são também fronteiras de gênero, raça e classe.
Existem outros logradouros públicos cujo acesso e fruição hoje se me parecem tão inacessíveis (como a praça Benedito Calixto) como desinteressantes (tal é o caso… do próprio Largo do Arouche e da Avenida Vieira de Carvalho ). Há ainda aqueles espaços, como a praça Roosevelt e sua diversidade simulada, que finalmente foram assistidos por mim em seu pleito.
Ainda hoje ouço de amigos: “ir na República fazer o quê? Não perdi nada lá!”. O Arouche segue sendo preconceituosamente apontado nos lugares que frequento atualmente como um lugar feio e perigoso, sem que se admita que a aura taciturna que envolve o logradouro esteja menos relacionada ao abandono institucional (vide políticas voltadas à cidadania e à segurança pública intensificadas na última gestão municipal) e mais associada aos seus frequentadores, gays, trans e lésbicas pobres e negros, não escolarizados e oriundos muitas vezes de bairros carentes de infraestrutura e opções de lazer onde duas pessoas do mesmo sexo possam tranquilamente ficar de mãos dadas.
Eu, por meu turno, hoje enceno pelo Largo um apego apagado — minhas idas à região da Vieira se restringiram, ao longo do último ano, às tarefas de comprar roupas e apresentar a cidade a gringos, numa encarnação improvável de uma caricatura do meu presente feita pelo meu passado crítico e ressentido.
Seria a reedição daquela contradição? Meu quinhão paradisíaco do juízo final dos gays? Ou então a aquisição do privilégio de poder abrir minha cova junto ao cemitério de bonecos defeituosos da Madame Tussauds?
Seja como for, a travessia é irreversível, seja pela trágica constatação de um passado afetivamente inalcançável, seja pela sorridente celebração de um rastro de pegadas que sedimentaram sob os meus pés o orgulho de ser bicha e a convicção de que existia uma cidade para mim.
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