Como o meu feminismo influenciou a vida da minha mãe

Grazie S
Revista Subjetiva
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5 min readMar 13, 2019
Reprodução: Pinterest

Eu venho de uma família grande. Tanto por parte de pai, como por parte de mãe, tenho muitos tios, tias, primos e primas. Minha avó teve 5 filhos, dentre eles, apenas uma mulher. Meu pai é o penúltimo filho, mas foi o primeiro a se “casar”. Minha mãe é dois anos mais velha do que ele e eles se conheceram no trabalho dela. Eu lembro que quando era pequena, adorava ouvir sobre a forma como eles se conheceram e acabaram juntando as escovas de dentes rapidamente. Hoje em dia, eu percebo que talvez, se a minha mãe vivesse outra realidade — onde não sofria maus tratos e abusos psicológicos por parte de minha avó materna — a coisa poderia ter sido diferente. Talvez ela tivesse terminado a escola, levado os estudos adiante e não teria casado com o meu pai. “Mas tu não estaria aí, escrevendo isso”. Bom, é verdade. Eu sou muito grata pela minha vida. Mas talvez minha mãe fosse mais feliz se tivesse adquirido alguma independência antes de casar com o meu pai.

Logo que eles casaram, ela engravidou de mim. E depois de mim, veio a minha irmã. Nós moramos na casa da minha avó paterna por muitos anos, porque meu pai não tinha condições de comprar uma casa. E minha mãe não trabalhava. Até os meus 14 anos, ela trabalhava esporadicamente. Uma faxina aqui, outra lá. Foi manicure, cuidou de crianças… Bom, ela se virou. Mas em 14 anos, ficou sem assinatura na carteira de trabalho para poder cuidar das filhas. Hoje, ela tem cinco. Mas a influência do meu pai sobre ela não precisar trabalhar já caiu por terra.

Eu consigo lembrar de aspectos da nossa convivência em família, que hoje já não fazem mais parte do nosso dia-a-dia porque o modo de pensar da minha mãe mudou. Antigamente, ela limpava toda a casa sozinha. Ela cozinhava todas as refeições, fosse o dia que fosse. Ela servia as refeições para o meu pai. Ela deixou de estudar porque o meu pai não queria que ela estudasse. Ela não trabalhava porque ele não deixava. Ela não saía com as amigas porque ele tinha ciúmes. Ela era completamente dependente dele, financeiramente e socialmente. E hoje eu percebo que talvez ela apenas aceitasse tudo o que ele falava, porque era ele quem pagava as contas de casa. Engels via a inserção da mulher nas indústrias, lá no século XVIII, como uma forma de emancipação social para a mulher, já que para ele a desigualdade legal entre homens e mulheres era causada pela opressão econômica que a mulher sofria. E ele não estava errado.

Quando as coisas em casa ficaram difíceis, lá pelos meus 13/14 anos, minha mãe voltou a trabalhar fora. E talvez isso tenha me jogado uma responsabilidade familiar que não deveria ser minha e que até hoje é um dilema na minha vida. Mas o trabalho empoderou a minha mãe. Deu voz para ela, porque agora ela também pagava as contas. A maioria delas, já que o meu pai estava sem emprego fixo. As coisas em casa passaram a ficar a responsabilidade do meu pai, enquanto a minha mãe saía para trabalhar e poder levar dinheiro para casa. De lá para cá, tudo mudou. Ela deixou de servir as refeições para ele. Deixou de limpar a casa e cozinhar. E mesmo que no começo isso fosse responsabilidade minha, aos poucos isso foi migrando para o meu pai, conforme eu ia adquirindo uma consciência feminista. Afinal, não se leva a louça com a vagina e sim com as mãos e nós dois às temos. Esses foram os primeiros passos para a libertação da minha mãe.

Mas o meu feminismo, talvez tenha libertado ela um pouco mais. Eu não me tornei o tipo de mulher calada, que mantém as revoltas para si. Eu brigo, eu discuto. E em casa não é diferente. Já briguei com parentes com os quais cortei relações indefinidamente. Descartei amizades tóxicas e me tornei a chata do rolê. Eu não posso ver algum comentário preconceituoso. Em casa, meu pai — que é bastante machista e preconceituoso — já tem uma frase pronta para comentar com meus familiares que falam coisas preconceituosas: “tu vai falar isso logo na frente da feminista?”.

A minha mãe me ouviu brigar muito. Me ouviu conversar com as minhas irmãs — também feministas — e viu eu me tornar a mulher que eu sou hoje e da qual ela já confessou se orgulhar, mesmo com nossas brigas devido as nossas diferenças. Ela acompanhou, mesmo que de longe, já que eu sou uma pessoa emocionalmente fechada e reclusa, o meu empoderamento. E isso empoderou ela. As relações de poder na minha casa mudaram. Eu tenho consciência que a minha mãe vivia um relacionamento conturbado e mesmo amando o meu pai, por diversas vezes eu encorajei ela a buscar a separação. Porque eu sabia que era o melhor para ela. Meu pai sempre foi muito ciumento e sempre quis regrar a vida dela. Hoje ele não faz mais isso. É ela quem manda em casa. Ela decide o que fazer, quando fazer e como fazer. E ele faz tudo o que ela quer. Nas últimas brigas deles, minha mãe o mandou embora de casa. Oito anos atrás, ela jamais teria feito isso. Hoje, ele cozinha. Ele limpa a casa. Minha mãe sai com as amigas, visita familiares e voltou a estudar. Ela quer fazer nutrição, mesmo sendo teimosa e não aceitando minha ajuda nos estudos.

Até o pensamento dela sobre relacionamentos mudou. Antes ela me dizia que eu precisava de um marido para poder me mudar. Hoje ela evita esse tipo de comentário, porque acredita que eu posso ter as minhas coisas por mérito meu. Às vezes escapa um comentário e outro machista, mas eu não julgo, apenas comento e explico o porquê aquilo é problemático. Para uma mulher que nem terminou o ensino fundamental e nunca teve contato com Simone de Beauvoir, a minha mãe está muito bem.

Por mais que às vezes a nossa vontade de desistir seja grande, são as mulheres a nossa volta que valem a luta. Ter consciência de classe, enquanto mulher, é um martírio e uma benção, eu sei. Às vezes sinto saudades da ignorância. Mas foi o meu feminismo que ajudou a minha mãe a se libertar. Hoje, ela sabe que pode qualquer coisa sozinha. Ela não precisa do meu pai para nada. E não tem nada mais recompensador do que isso para mim, enquanto mulher.
Mulheres empoderadas empoderam outras mulheres.

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