Consciência da Terra hostil

Quantos de nós ainda vivem absolutamente alheios à realidade da Terra hostil? Dos que têm alguma noção, quantos, de fato, estão horrorizados? Dos que sabem e estão horrorizados, quantos têm coragem de agir e enfrentar a jornada?

Felipe Moreno
Revista Subjetiva
4 min readAug 20, 2021

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Não há muito tempo retumbou, dilacerante, na minha consciência, a realidade da Terra hostil. Desde então, minhas inquietações seguem as mesmas: como viver? Que mundo encontrarei no velho que serei amanhã? Que adultos serão as crianças de hoje neste amanhã nebuloso? Sabemos sobre hoje: a cada dia lacramos mais uma janela de estabilidade e abundância e forçamos, um pouco mais, a abertura dos portões do inferno. Em termos substanciais, isso se traduz através de cada bioma que perdemos enquanto as emissões de carbono seguem aumentando.

Quantos de nós ainda vivem absolutamente alheios à realidade da Terra hostil? Dos que têm alguma noção, quantos, de fato, estão horrorizados? Dos que sabem e estão horrorizados, quantos têm coragem de agir e enfrentar a jornada? Não considerar nenhuma aspecto desse árido processo geológico, e planejar a vida como se a saúde e o equilíbrio da biosfera fossem idênticos aos de quinhentos, cem, cinquenta anos atrás, é como construir uma cabana de palha, para abrigar toda a família, nos arredores de um vulcão prestes a entrar em erupção.

Discurso apocalítico? Retórica escatológica? Que 2020 e 2021 não me deixem mentir, nem exagerar: milhões de mortos por uma pandemia; inundações sem precedentes, numa mesma semana, na Alemanha, Bélgica e China, deixando rastros assombrosos de destruição e morte. Incêndios florestais incontroláveis em Portugal, Grécia, no Brasil, nos Estados Unidos e na Austrália, torrando, em dias, ambientes de tamanhos equivalentes a países como Israel. O Canadá, um país de clima ameno, fervendo sob a temperatura de 49 graus. E são apenas alguns destaques, apenas alguns exemplos incipientes.

É de suma importância buscarmos as origens profundas que nos lançaram no abismo. O sujeito civilizado moderno se deparou com as forças da natureza e as julgou hostis por si só, logo passíveis de serem capturadas e escravizadas. Mesmo com sua ilustre inteligência com prevalência à racionalidade, com o triunfo da ciência como dogma, o sujeito civilizado moderno — um homem branco, europeu — não foi capaz de considerar que qualquer tentativa de capturar e escravizar as forças da natureza não está somente fadada ao fracasso, mas também a receber uma grande resposta, um contragolpe. (Na comparação de forças, qual golpe será mais contundente: o que vem da mão do homem branco, europeu, ou o que brota das entranhas desse imenso planeta?).

Em suma, o cálculo arruinante da nossa civilização não foi considerar que as forças da natureza são indiferentes ao sofrimento humano e, tantas vezes, hostis; mas acreditar que seríamos capazes de subjugá-las — e empreender um esforço descomunal para isso, a ponto da quase inabilidade de abandonar o plano. É uma terrível faceta do nosso narcisismo, afinal: preferimos continuar insistindo nas nossas cruéis ilusões do que consentir o recado da Terra.

O recado vem em tom estrondoso, avassalador: ninguém supera os fluxos da Terra, sendo eles hostis ou não, através da força da técnica. Na verdade, nenhuma espécie, por mais brilhante que seja, é capaz de superar a Terra, mas de adoecê-la por milhões de anos, sim — e é o que estamos fazendo. A despeito dos nossos monstruosos equívocos, há um poder, que concerne exclusivamente a nós, em toda essa história: se fomos capazes de adoecer o planeta, também devemos ser capazes de mitigar a imensa força da catástrofe que produzimos, regenerar muita coisa e controlar a situação.

Podíamos apenas ter mantido a percepção que a natureza, intrinsecamente, é hostil. Se, no entanto, em vez de empreender o esforço para domá-la e explorá-la, tivéssemos apenas nos resignado diante desse “fato”, e nos colocado à disposição de, mais uma vez, tentar aprender e cocriar junto com ela, com certeza não teríamos inventado uma economia de extrativismo extremo (economia da ruína, da fumaça e do veneno) e, como consequência, não saberíamos o que é aquecimento global. Os dramas humanos seriam outros, os de sempre, porém teríamos a prolongada garantia de que nosso chão estaria sempre firme e fértil.

A percepção do sujeito civilizado moderno de que a natureza, intrinsecamente, é hostil, pode ser considerada excessivamente enviesada, grosseira e incompleta. Para incontáveis povos, sobretudo os que habitaram regiões abundantes, de clima favorável, nos trópicos, esta percepção nunca existiu. De qualquer forma, as consequências dessa míope constatação de que a natureza é, em essência, uma besta-fera que deve ser enjaulada, por enfim produziu uma real natureza hostil, cada vez mais imprevisível e indomável. Diante dela, imersos nela, como viver?

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Felipe Moreno
Revista Subjetiva

Haicaísta com ternura, prosador com afiação (e vice-versa). Autor de “o bambu balança” (Bestiário, 2022): https://tinyurl.com/36r2kc4j