Contemplação, encantamento, reconexão

Dois tipos de contemplação que podem botar as coisas em perspectiva, aliviar o sofrimento — e promover encantamento e reconexão com a vida

Alessandra Nahra
Revista Subjetiva
5 min readApr 23, 2021

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Eu acho que a contemplação é um instrumento potente para a nossa reconexão. O que é reconexão e por que penso ser fundamental pra gente nesse momento planetário: parto do princípio de que a gente se desconectou da vida. Essa desconexão é a única explicação possível pra gente estar vendo o planeta e os seres sofrerem do jeito que estamos sofrendo e continuarmos fazendo o que sempre fizemos, que é mais do mesmo que nos trouxe até aqui. Aqui: emergência climática, extinção, pandemia provocada por interferência indevida no ambiente, falta de alimento e de condições básicas de sobrevivência, governo genocida — por aí vai. Foi a desconexão que nos trouxe até aqui e nos mantém reféns. Logo, a urgência é se reconectar. Com o quê? Basicamente, com a vida. Sentir-se célula do macro-organismo. Encaixar-se novamente nesse grande sistema planetário e cósmico.

Como fazer isso? Eu proponho que seja através do encantamento. O único encantamento possível é encantar-se. Encantar-se com a vida, através da vida. Esquece o que o capitalismo te ensinou, que é a “felicidade” através de coisas e experiências inebriantes. Isso não vai te reconectar, pois está na base justamente do processo de DESconexão (pra ter coisas você precisa comprar, comprar, comprar; experiência inebriantes são como anestesiar o sentir). Proponho encantar-se com a vida — com a vida biológica, com a química, a física, as formas animais, vegetais, minerais, os micro-organismos, fungos, bactérias; a terra, o mar, o céu, as pedras, nuvens, árvores, ondas; o teu corpo que dança, corre, nada; o corpo do outro que é quente ao encostar em nós, que é peludo e fofo quando é gato e cachorro — e por aí vai. Tu entendeu.

O EXISTIR NÃO-HUMANO

Um dos jeitos de se encantar é a contemplação. E agora chegamos no assunto que começou lá em cima, depois dessa volta toda. Ai, que coisa mais… simples. Sim, é simples, é quieto, não chapa, não embebeda, não sacia, não inebria, não causa frio na barriga, não dá injeção de serotonina — pelo menos no começo. Depois, com a prática, começa a dar umas sensações mucho lokas, garanto. Então vou falar de duas contemplações muito boas pra botar as coisas em perspectiva quando bate aquele desespero: contemplar o existir não humano e contemplar o tempo cósmico.

Contemplar é basicamente ficar olhando. Contemplar o existir não humano: ficar olhando ali pro mar batendo a pedra. Pra pedra. Pro céu com as nuvens passando. Pras formigas fazendo as coisas delas. Os pássaros fazendo as deles. Mesmo na cidade tem nuvem, formiga, passarinho. Fica ali olhando, olhando. Encontra um inseto, chega o mais perto que conseguir e fica vendo os movimentos que ele faz com as patas, com as antenas.

Tu vai começar a se dar conta que tem todo um universo para além do humano. Aliás, que o Universo INTEIRO é além e apesar do humano.

O não-humano, seja biótico (vivo) ou abiótico (tudo que é da física e da química: o ar, a água, as rochas, por aí) está aqui sendo eles, fazendo o que eles têm que fazer, independente dos humanos. Tira os humanos da equação e o não-humano vai continuar igualzinho, fazendo as mesmas coisas, sendo, existindo, como aliás há BILHÕES de anos.

O TEMPO CÓSMICO

No que chegamos na segunda contemplação: o tempo cósmico. Eu chamo de tempo cósmico porque estou falando do tempo que levou para isso tudo existir, o biótico, abiótico, humano, não-humano, rocha, mar, sol, elementos químicos, plantas, TUDO. Carl Sagan explica isso com um calendário que comprime a idade do universo como se fosse um ano — no primeiro dia temos o Big Bang. Cada segundo equivale a 500 anos. Nesse calendário, o humano surge apenas às 22:30 do dia 31 de dezembro. Ou seja, atrasadíssimo pra festa. Às 23:59:59 acontece o início do capitalismo. Estou estudando em uma disciplina do mestrado a passagem do feudalismo para o capitalismo, e me caiu a ficha de que esse sistema tem apenas 500 anos de existência. Gente, o Brasil (como nação, essa coisa que a gente chama de Brasil, que começou com a chegada do invasor europeu) existe há só 500 anos. O capitalismo e o Brasil (que surgiram mais ou menos juntos) são uns bebês no tempo cósmico. A Idade Média, aquele período que a gente tem o costume de associar com ignorância e barbárie, terminou há um pouco mais de 5 séculos. Um século são cem anos. A vida de uma pessoa saudável. Jesus, cujo aparecimento inicia a contagem dessa nossa era, nasceu ontem, praticamente. Entre Jesus e a Idade Média, 500 anos. A Idade Média durou até que bastante (no tempo humano): mil anos. Dez gerações de pessoas saudáveis. Entre o fim da Idade Média e hoje, só 5 gerações de pessoas saudáveis. Foi logo ali. Faz pouquíssimo tempo, se a gente pensar que

o Universo surgiu há mais de 13 BILHÕES de anos (pra quem quiser se aprofundar nesse choque de realidade tem um vídeo que mostra esses 13 bilhões de anos em 10 minutos — cortesia da aula da @microbiologiacontemplativa).

A gente se importa tanto com o amor, a dor, o sofrimento, o sucesso, a felicidade — mas o Universo e o não-humano vai continuar existindo para muito além da nossa vida humana coletiva, como espécie, e para MUITO além da nossa vida individual — do mesmo jeito que vem existindo há 13 bilhões de anos, sendo que o homo sapiens só apareceu nessa história há meros 300 mil.

Se isso não botar as coisas em perspectiva, não sei o que vai.

A gente se dá muita importância, né não?

Alessandra vive na Guarda do Embaú, em Santa Catarina, com o cachorro Heitor e os cinco gatos. É mestranda em Nutrição em Saúde Pública na USP. Escreve sobre agroecologia e sistemas alimentares e dá oficinas de horta caseira, compostagem doméstica e alimentação política. Em 2017 viajou pela América Latina em busca de projetos de permacultura e agricultura urbana, e em 2020 publicou O Chão que me Fez, relatando a viagem. Está lançando seu segundo livro, Todos os cachorros que eu abandonei, através de uma campanha de financiamento coletivo. Segue no Instagram @alenahra para ver os bichos, as plantas, as pedras; os bióticos e abióticos tudo.

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Alessandra Nahra
Revista Subjetiva

Escrevo, planto, estudo, viajo. Falo com bichos, abraço árvores, e vice-versa.