Coração Seco

Quando o fogo apaga, a alma para de doer

Julia Caramés
Revista Subjetiva
5 min readMar 2, 2020

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Dia desses Arnaldo Antunes lançou um álbum novo que graças ao algoritmo que tudo nos entrega e tudo nos envolve, veio pra mim como a dose perfeita de café no começo da manhã: fugaz e estimulante. Já chegando no trabalho, ouvi a última faixa “Onde é que foi parar meu coração” e naqueles versos curtos, simples e infantis, me percebi dentro da melodia, a mesma que tocava nesse coração seco que vos fala. “ Não sei se é só minha sina, ou praga do criador. Mas sigo procurando com labor”.

A último dos grandes amores que eu vivi— assim eu os considero porque tal qual o personagem de Vargas Llosa em Travessuras da Menina Má, meu amor existe porque eu acredito nele, em todos eles — me causou grande comoção e altas doses de loucuras, como uma bela paixão furiosa. Foi a própria epopeia do coração partido: chorei por sete dias e sete noites até encapsular as lágrimas e despejar tudo no vaso sanitário. Certos amores só se vão quando apertamos o botão da descarga.

E não só. Passei meses entorpecida. A falta dos ansiolíticos deixou a visão ainda mais enevoada. Demorei pra firmar os pés no chão novamente. Saí caçando como uma loba esfomeada e perdida, por ajudas celestiais das mais variadas. Todo o oculto e místico era bem vindo, mas não havia discernimento entre o que era bom, real ou vivo. O que valia era a saciedade e a certeza ou o mais próximo disso, de que eu voltaria a me sentir viva algum dia.

Agora que os ponteiros do relógio já deram voltas o suficiente para tocar o ritmo que embala os ciclos, essa ideia se despistou da fronte. Passadas as lamúrias e nervuras confusas, me encontrei comigo e me senti parte totalmente integrada de mim. Viva? Sim. Apaixonada? Não mais.

Depois da avalanche que foi o ano que passou, os astros resolveram me presentear com um pretendente. A delicadeza do signo de Peixes, um garoto de cílios cumpridos, olhos de felino e voz suave. O pretendente se hipnotizou pelo charme que eu carrego junto ao delineador preto nos olhos grandes e expressivos e passou a querer explorar mais e mais o que eu tinha guardado no fundo da alma. Estudou minhas vontades, a cultura dos meus ancestrais, meu gosto pela estética e por tentar deixar a vida com cara de agradável e fina. Desistiu de me dominar no segundo tempo e aceitou meus mistérios: pra ele eu era mulher selvagem e indomável e foi assim que ele se apaixonou.

Parece que finalmente temos o enredo dos contos de fadas que todos aqueles que me leem desde o começo dessas crônicas esperou ansiosamente. Parece que finalmente o coração que tanto chora seria mais amado do que poderia prever. Do que poderia imaginar. Do que poderia aguentar. Tão pouco o quis e foi nesse exato momento em que eu percebi que feito folha seca essa alma rejeitaria tudo aquilo que não lhe fosse convincente o suficiente. Ou seria só exaustão das mais loucas histórias de um coração que sempre termina partido?

O pretendente reparava em tudo em mim. Via mais das minhas nuances que eu mesma. Tentou me decifrar e me amou em cada centímetro. Meu corpo aceitou a prova e o êxtase que parecia tão distante, veio sem nenhuma timidez. O problema é que a frieza também deixa seus rastros e eu depois do gozo só queria o cheiro de lavanda da minha própria cama. Não desejava outros braços que não fossem apenas os meus a se enrolar com os travesseiros. O pretendente agora manhoso se sentiu usado e com dores úmidas. Tentou não questionar porque aceitava qualquer pedaço de presença meu.

Tenho marte em Libra e pra um bom entendedor de astrologia sabe que meu senso de justiça também é minha máxima. Decidi dar partida desse encontro e ser coerente com o que gritava a minha alma: “não vá ficar apenas pelo amor do outro, só vale a dupla quando bate a certeza”. Prometi para mim mesma que não me colocaria mais em buracos e ativei a loba que mora em mim. Minha caçada é outra e já não preciso de tanta admiração para aquecer esse ego.

A paixão é ato orgânico e pouco higiênico. Nem com as melhores intenções, nem com a maior devoção, o pretendente seria capaz de despertar tal fúria. Acho natural sofrer em espécie de não ser outra coisa que instintiva. O amor é animal muitas vezes. Quando avisei que ia partir, o pretendente questionou o que poderia ter feito de certo se não melhor? E então eu chorei. Derramei lágrimas tão secas quanto o caminho pra encontrar a fonte da paixão da alma. Chorei por sentir culpa, por que estamos sempre tentando entender por que a paixão não nos encontra na hora exata? Quando os dois corpos exatos estão também com as vontades exatas e assim se compõe a canção. A vida deixa cada vez mais de parecer com filme e fica parecendo qualquer coisa que eu não sei ainda definir.

A verdade é que os opostos não se atraem tanto assim. O pretendente tão felino era avesso a mim. Acreditava no casamento como contrato e isso eu não poderia aguentar. Somos livres pra ir e vir e duas pessoas só se entrelaçam quando ambas querem, se um não quer dois não vão a lugar algum. Além das inúmeras discussões políticas que só fizeram a me irritar. Paixão e esquizofrenia só combinam em filme de suspense. Irritação pra mim não dá tesão nenhum.

Às vezes tudo o que temos é o depois. O agora pertence a outras gavetas e outros planos. Para o amor entrar é preciso sorrir e o outro sorrir de volta na mesma intensidade. No mesmo plano e na mesma existência. Encontros se baseiam em memórias que podem ser distantes ou podem aquecer o lado de dentro. Fazer a mão suar e a perna tremer. A palavra que percorre a corrente sanguínea para na garganta e deita no coração. A gente sabe o que faz a alma vibrar e não vale a pena esperar numa esquina que não brilha os olhos. Amor também é estética e se você preferir, pode ler todas essas frases ouvindo a voz de Arnaldo Antunes. Sempre que eu me apaixono, é na voz dele que eu narro qualquer emoção.

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Julia Caramés
Revista Subjetiva

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