“Coringa” é um dos melhores filmes dos últimos tempos, mas exige cuidado e reflexão

Andressa Faria de Almeida
Revista Subjetiva
Published in
4 min readOct 2, 2019

É mais fácil ignorar os excluídos e marginalizados do que dar a eles voz e espaço, mesmo que eles peçam incansavelmente por reconhecimento e oportunidade. Os deixamos de lado quando passamos batidos por aqueles pedem ajuda financeira no meio da rua, quando negamos acessibilidade a um deficiente físico ou quando não oferecemos tratamento adequado para os doentes mentais, para citar apenas alguns exemplos recorrentes de abandono cometidos dentro da nossa realidade.

É claro que não fazemos nada disso por maldade, mas porque estamos inseridos em um sistema de opressão muito bem estruturado, em que poucos são os privilegiados que podem se dar ao luxo de sentir e praticar a empatia, já que a maior parte de nós está mais preocupada em sobreviver o hoje e o amanhã também. Não é incomum, entretanto, que alguns desses indivíduos se rebelem contra toda a ordem estabelecida, usando a violência como meio para finalmente alcançarem a atenção, valoração e poder que sempre buscaram.

Essa é a tônica por traz do “Coringa” perfeitamente roteirizado e dirigido por Todd Phillips (com a participação de Scott Silver), filme que segue todas as premissas de um potente estudo de personagem, sem ignorar em momento algum a importância de nos enquadrar dentro dessa análise, nos mostrando que quem Arthur Fleck é e se torna é em grande parte o produto de uma sociedade desigual e cruel com quem não está no topo da pirâmide, então em várias medidas provamos o veneno que nós mesmos desenvolvemos.

Logo nos primeiros segundos de projeção somos apresentados a um homem claramente devastado, que tenta conciliar os distúrbios que o tornam quase sempre indesejado com o seu trabalho como palhaço e comediante, o que por si só já é uma grande ironia. Além disso, o sujeito também precisa cuidar da sua mãe, uma mulher frágil e instável, que tem a fé de que seu ex-patrão os salvará da pobreza e da ausência absoluta de perspectivas.

O trabalho de Joaquin Phoenix desde o início é primoroso justamente por ser pensado nos mínimos detalhes, e até a sua risada proveniente de sua condição mental é apresentada como algo que lhe causa enorme dor e sofrimento (e que quase sempre contrasta com seu real estado). O emagrecimento extremo trabalhado pelo ator se justifica na apresentação de um Fleck que está no limite da sua sanidade, tanto física quanto psíquica, e nos permite perceber melhor a evolução da sua postura à medida em que o personagem vai se transformando em Coringa, de alguém absolutamente curvado à vida para um indivíduo que se comporta (e é) dono do próprio destino, dançando conforme a música sem medo de ser e existir!

Falando nela, a música não poderia ser mais funcional para os preceitos desse longa, e a islandesa Hildur Guðnadóttir desenvolve uma trilha incidental impecável, que cresce junto com o seu protagonista, dando a ele ares de entidade. A mesma lógica é seguida pela fotografia de Lawrence Sher, que a partir do segundo ato passa a retratar Arthur Fleck de baixo para cima, como costumeiramente se faz com um herói, mas ao mesmo tempo abre mão do filtro azulado e amarelado de antes (que denotavam depressão e doença) e lança mão de um esverdeado, nos lembrando algo que jamais podemos nos esquecer: esse é um filme de vilão!

O capricho em termos de cenografia e figurino também impressionam, e sem dificuldade somos mergulhados em uma Gotham totalmente decadente, com personagens que o tempo todo estão muito mais preocupados consigo mesmos do que com o próximo. Essa lógica não se altera com a ascensão do Coringa, e mesmo que ele seja abraçado pelos ignorados e rejeitados ainda é um homem que age de acordo com os próprios interesses, sendo o caos encarnado apenas e tão somente pelas suas razões e demandas internas, se tornando o algoz no quadro onde já foi a vítima.

Coringa”, portanto, evoca o que há de pior em todos nós e não é nessa obra que você encontrará algum tipo de luz ou resolução, muito pelo contrário. Talvez após assistí-la seja possível começar a compreender as motivações por trás das trevas alheias (e por trás das nossas próprias), mas na verdade a narrativa nos brinda com mais perguntas do que respostas. Cabe a nós após a projeção fazer o nosso melhor pelo outro e por nós mesmos, tudo que Arthur Fleck não foi capaz!

Nota: 10

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