Cozinhar aos domingos

Giovanna Indelicato
Revista Subjetiva
Published in
6 min readMay 22, 2018

Como num domingo qualquer, Rosa chega da missa para a casa vazia. Do marido já mal lembra o rosto, há trinta anos saiu pela porta e nunca mais voltou. Soube dele por mais cinco, enquanto chegavam mensalmente os envelopes com dinheiro para os filhos. Depois que o caçula completou dezoito, nunca mais. Os filhos, em outras cidades, já tem filhos. Domingo é o dia mais sozinho porque é o dia da família. A pressuposição da presença intensifica a ausência.

Marie Godest

Começa imediatamente o preparo do almoço, como faz todos os domingos. Abre a gaveta cheia de livros de receitas, a maioria escritos a mão — os impressos foram presenteados pelas noras ao longo dos anos — e algo na forma como a luz está tocando a grama lá fora, algo na melodia de Gilberto Gil que sai do rádio, algo no som do cortador de grama de algum vizinho ao longe, a faz tirar o livro grande do fundo da gaveta. É o livro das primeiras receitas que aprendeu, com sua mãe, quando tinha ainda treze anos. A caligrafia das duas misturam-se ao longo das páginas, muitas vezes sobrepostas, corrigindo uma medida de farinha aqui, um tempo de forno ali.

Sobre o balcão, abre e folheia com atenção o caderno antigo. Macarronada ao molho de tomate. Hoje, o tempo de preparo em um livro impresso indicaria não mais de 20 minutos. Naqueles tempos, naquele livro, porém, eram horas. Essa foi uma das primeiras receitas. Acompanhou sua mãe durante todo o processo. Foram à feira na quarta de manhã, escolher os tomates que estariam no ponto ideal em quatro dias. Os ovos, que ficavam expostos no balcão, enquanto as galinhas circulavam livremente no chão. Aquele foi o primeiro domingo que não acompanhou os irmãos à missa. Ficou em casa com a mãe na cozinha, desde os primeiros raios de sol, batendo a massa, abrindo-a com o rolo, salpicando farinha, cortando na espessura ideal. Pendurando as tiras amareladas em varais por toda cozinha. Deixando-as descansar enquanto preparavam o molho. Ralavam o queijo. Colhiam manjericão do jardim. As duas trabalhando em silêncio, coordenadas, com uma instrução ocasional na voz firme da mãe. O som das crianças irrompendo no jardim, os mais velhos ralhando com os mais novos por sujarem as roupas de domingo. Ela e a mãe distribuindo pratos na mesa, todos sentam-se e comem e conversam. Ninguém comenta do macarrão, ou do molho, ou do manjericão. Estão felizes e sonolentos ao final. O encontro com olhar cúmplice da mãe, uma aprovação muda, enquanto o pai boceja com as mãos na barriga e indica que irá fazer a sesta.

Marie Godest

Algumas páginas a diante, frango assado com batatas. Já havia preparado o prato muitas vezes, e a essa altura era a principal responsável pelos almoços de domingo, a mãe envelhecida, cansada, com dores nas costas. As voltas da missa cada vez mais silenciosas, a mesa lotada, agora acrescida das namoradas dos irmãos e primos. Acabara de levar a travessa para o centro da mesa, todos já reunidos, quando Alessandro levantou com a taça de vinho em mãos antes que pudesse cortar o primeiro pedaço da ave. Essa página está marcada pelo anuncio do noivado do seu irmão mais velho com Gina.

Avançando as receitas do livro, o ravióli de ricota ficou esquecido depois da tragédia. Estava recolhendo os pratos da mesa e empilhando-os na pia da cozinha, os irmãos fumando no quintal de trás, o pai na cadeira de balanço em frente a casa, sempre perdido entre a vigília e a sesta. Ao terminar, dirigiu-se para a área dos quartos, onde encontrou Gina desfalecida no chão, uma mancha de sangue na saia. Ela e Alessandro anunciariam a vinda do primeiro sobrinho durante a sobremesa. Disseram que o molho de laranja com canela que fez mal ao bebê. Rosa nunca se perdoou e Gina não voltou a engravidar.

Dez anos depois da primeira macarronada, os participantes fixos do almoço de domingo haviam diminuído. Dois anos antes, o pai espreguiçou-se depois de se deliciar com um ragu, anunciou a sesta e não pôde mais se levantar. A página do ragu ficou para sempre com o cheiro das velas. Os irmãos já haviam partido para suas famílias e faziam visitas ocasionais, sempre combinadas, e nunca precedidas pela missa. Rosa então fazia o almoço usualmente para quatro pessoas além dela: sua mãe, o irmão caçula e a esposa, que instalou-se na casa após o casamento, e um vizinho, que começou a frequentar os almoços anos antes, por ter amizade com os mais velhos, e nunca se casou ou deixou de visita-los semanalmente. Nesse domingo, a mãe foi a cozinha e declarou que a ensinaria uma receita inédita. Era a última página do livro, que vinha sendo preenchido pela sua caligrafia nos últimos anos. A mãe quis ensiná-la lasanha, e Rosa a alertou que já vinham preparando esse prato há anos. A matrona desdenhou, e explicou que toda família tem uma receita especial, receita essa que Rosa nunca deveria revelar à ninguém, somente quando tivesse uma filha preparada para casar. Rosa riu. Passaram a manhã na cozinha em silêncio, temperando massa, salpicando especiarias, em meio aos aromas que subiam das panelas, saíam do forno, exalavam do balcão. Nesse dia o vizinho chegou de terno e pediu a sua mão.

Marie Godest

Poucas semanas depois Rosa saiu de casa. Passou a cozinhar o almoço dos domingos para o marido. A mãe voltou a frequentar a missa, livre da obrigação de alimentar a família, e seguiu o ritual até sua morte, alguns anos depois. Rosa teve três filhos, todos homens. Ao longo dos domingos, fez muitas macarronadas, ragus, vitela, risotos. Até as emendas não caberem mais no livro de sua mãe. Escreveu receitas e variações em novos cadernos. O livro antigo ficava sempre no fundo da gaveta, e era resgatado em ocasiões especiais, apenas aquela última página, com a receita secreta da lasanha.

A primeira comunhão de Carlinhos.

Aniversário de dez anos de casamento.

Quando Enrico passou na escola técnica.

O dia que se descobriu grávida de Sandro, onze anos depois do nascimento do último filho.

Sempre só na cozinha, salpicando o balcão de farinha, temperando a massa, abrindo com o rolo. Os tomates comprados no supermercado. O rádio agora ligado na tomada. Os três filhos no sofá, brigando pelo controle remoto. Desistiram da missa assim que aprenderam a ler. A ausência precoce do marido.

Rosa ficou estancada naquela última página. Quantos anos. O sol agora a pino, queimando a grama. Olha de relance a fruteira, dois tomates meio verdes em meio a batatas, cebolas e um cacho de banana. Como num quadro. Natureza morta. Começa salpicar farinha no balcão, juntar os ingredientes em uma travessa. Uma dança coordenada e silenciosa, como era com sua mãe. Nenhum barulho de criança no quintal. Nenhum barulho da TV na sala. Todas as épocas passaram. A lasanha com a receita secreta no forno, nenhuma filha para guardar o segredo de família. Saudade da mãe. Saudade de ser mãe.

Marie Godest

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Giovanna Indelicato
Revista Subjetiva

roteirista e diretora de todas as fanfics que já passaram pela minha cabeça