Cristandades
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De Porto Alegre a Florianópolis, mochila estropiada nas costas, cinquenta e seis quilos, trinta e dois anos, quinze de dependência química percorrendo o sangue, os nervos, as vísceras.
Cinco dias na rua, penando, mal dormindo no duro — ossos do corpo magérrimo em contato com concreto e ferro; Papelão? Pouca utilidade, porque molha — regime intenso de chuvas na capital catarinense. Carne úmida e fria. Os tênis esburacados e encharcados, cheirando a carniça: a cada passo, o barulhinho irritante: squish. Abrigo? Tem trauma. Certa vez, ainda na capital gaúcha, roubaram-lhe tudo enquanto dormia.
No sexto, arranja bico: ajudante de pedreiro. Trabalha firme e pagam-lhe certinho: R$ 70,00 nas mãos ásperas, encardidas, calos e feridas, unhas negras, tingidas pelo inferno de cada esquina.
Dinheiro guardado, garrafinha de pinga, noite. Sozinho, na fissura: sobe o morro. Na descida, a viatura. Azar: dia de ronda ostensiva, fluxo livre aos fardados, o que, na visão de juristas e sociólogos, interpreta-se abuso de autoridade, crime, genocídio seletivo. Selecionam-lhe para uma volta na cidade.
Dirigindo, o chefe da operação não suja as mãos; ri e manda:
— Na orelha.
Pancadas nos ouvidos, estampidos; surdez, gemidos.
— Na nuca.
Tenta proteger: é pior.
— Agora na cabeça.
Balbucia, desmaia. Acorda, cuspe sangue e dois dentes.
Fim do “passeio”: região isolada, terreno baldio. Sequer desperdiçarão bala: será no mata-leão. Não enxergam a casinha próxima, discreta, tudo apagado. A proprietária ouve gritos. Destemida, sai. Corajosa, interpola os policiais assim que percebe a barbárie. Freira, salva-o em nome de Cristo.
Acolhe o humilhado. Suja as mãos enrugadas com o jorro de sangue tóxico. Banho, curativos, comida, cama e bençãos. Vai orar no quarto: as mãos enroladas em terços, pede graça e salvação não apenas à vítima, mas também aos algozes.
Setenta e seis anos de fé e misericórdia irrestritas; e, apesar das escandalosas incongruências, partilha da mesma religião que o truculento que dirigiu a viatura, riu e delegou a tortura. Cristão, sim. Pois este, quando chega em casa, também faz seu ritual: tira a farda, veste pijama, beija o escapulário de prata que nunca tira do peito torneado e depilado; faz sinal da cruz. Com a voz da mente, pede o de sempre: proteção à família, sobretudo aos filhos. Força para combater o mal — os criminosos, os vagabundos, os comunistas. E, homem de bem que se sente, deita-se ao lado da mulher, as mãos limpas e a consciência cristalina.