Cultura do estupro: o que a reação das pessoas ao Caso Neymar diz sobre nossa sociedade?

Thaís Campolina
Revista Subjetiva
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4 min readJun 4, 2019
Neymar vestindo a camisa 10 da seleção brasileira em campo

Desde que a acusação de estupro contra Neymar saiu na mídia, muito se discute sobre o comportamento da possível vítima. Esse é o modus operandi da cultura do estupro. Especialmente quando o acusado usa o comportamento sexual da mulher como um meio de tentar provar sua inocência.

Mesmo que o jogador seja inocente na acusação de estupro, sua tentativa de defesa pública partiu de estereótipos de gênero, misoginia e de noções bem erradas do que é consentimento. Além de tudo, houve a propagação de imagens íntimas da mulher em questão, o que por si só configura crime e também pode ser visto como uma tentativa de intimidação bem característica do fenômeno chamado de pornografia de vingança. Toda a exposição do caso e da possível vítima feita pelo Neymar, seu pai, Datena e outros evidencia o poder e influência que o atleta tem e como a sociedade legitima que ele o use contra essa mulher como uma maneira de silenciá-la.

A partir desse caso e a reação da sociedade ao que é dito, exposto ou suposto, mesmo sem qualquer veredicto sobre Neymar, temos a chance de debater sobre o que é estupro e combater esses pensamentos que fazem tanta gente considerar que a manifestação prévia de uma certa disponibilidade sexual é necessariamente um impeditivo para que tenha havido abuso e como essa visão colabora com a ideia de que certas mulheres são consideradas estupráveis e outras não.

Para entender tudo isso é preciso se perguntar sobre o porquê das defesas de crime de estupro, profissionais ou feitas pelo próprio acusado, sempre apelarem para essa abordagem em que o foco recai na vítima que é cobrada a se provar idônea o tempo todo.

O estupro é abordado historicamente, inclusive pelo Direito, pela ótica masculina e patriarcal que vê as mulheres como manipuladoras e traiçoeiras quando se trata de sexo, sedução e afins. A ideia de que o valor feminino estava ligado à virgindade alimentava ainda mais essa visão, porque esse seria um motivo que faria mulheres que “cederam à tentação do sexo” mentirem e a possível vida sexual fora do casamento um sinal de que a mulher em questão já seria impura, logo pouco confiável e propensa a fraude. Isso, somado ao fato de que o corpo feminino é considerado propriedade e direito dos homens, sedimentou a prática de colocar a vítima como foco em caso de violência sexual. Isso é tão forte que há quem defenda, ainda hoje, que não existe estupro dentro de casamentos usando o argumento de que esse contrato social e jurídico envolve necessariamente obrigação de sexo.

Quando se coloca uma possível vítima de estupro no centro de um tribunal público em que se discute, principalmente, o comportamento sexual dessa mulher que acusa, a mensagem que se passa é a de que mulheres ativas sexualmente são corpos disponíveis, logo impossíveis de serem estupradas.

É preciso reiterar que o fato de dizer sim uma vez não é sinônimo de um sim eterno ou que esse sim atinge todas as práticas sexuais possíveis. Sexo é algo que parte de interesse, respeito e combinados mútuos. Sua palavra-chave é consentimento e ele pode ser retirado a qualquer momento e ainda assim precisa ser respeitado. Topar transar não é topar fazer tudo que o outro quer. Topar sexo agora não impede a pessoa de mudar de ideia 10 minutos depois.

A noção deturpada de consentimento faz com que mulheres se sintam confusas sobre terem ou não sofrido violência, principalmente em casos de date rape e estupro marital. O imaginário social do que é estupro ainda é o da vítima pega de surpresa e com extrema violência em um beco escuro de noite, o que torna difícil o reconhecimento do crime de primeira por quem vive situações que envolvem paquera, interesse e envolvimento ou por quem não se vê no papel de vítima ideal por já ter transado ou querido transar com o agressor.

Estamos todos acostumados demais com a desumanização das mulheres, o que dificulta que a gente olhe para possíveis vítimas femininas de homens, especialmente aqueles poderosos e públicos envolvidos em casos de date rape, com empatia. As estranhezas que podemos enxergar em um relato podem ser sintomas de estresse pós-tramático ou parte de um processo de distanciamento e negação, por exemplo. Quando se trata sobre estupro, podemos, mesmo sem querer, nos amparar em noções distorcidas pelo machismo e misoginia do que se é ou não violência sexual e de quem pode ou não ser vítima dela.

Esse texto não é sobre condenar ou absolver o Neymar socialmente, é, principalmente, sobre como nossa sociedade encara a violência sexual e o corpo das mulheres. Mesmo que esse caso acabe se tornando um exemplo raríssimo de falsa acusação, a reação da sociedade perante o tribunal sexual montado pelo Neymar diz muito sobre o mundo que vivemos e o que é e como se manifesta a cultura do estupro.

Obs: Esse texto surgiu a partir de dois tweets que fiz para o Ativismo de Sofá e foi publicado, originalmente, em minha página pessoal no Facebook. Se você gostou dessa leitura, deixe suas palmas, faça um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe pelo Facebook e Twitter.

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Thaís Campolina
Revista Subjetiva

leitora, escritora e curiosa. autora de “eu investigo qualquer coisa sem registro” e “Maria Eduarda não precisa de uma tábua ouija” https://thaisescreve.com