Déficit de atenção

Carlos Barth
Revista Subjetiva
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2 min readOct 23, 2020
Imagem: reprodução internet

Agora, olhando em retrospectiva, percebo que minha prisão se deu devido a uma série de coincidências e mal entendidos. Não, doutor, não nego que essa ficha aí seja minha. Realmente, já pisei na bola, mas tenho andado na linha faz um bom tempo. O que fazia no cativeiro? Parece loucura, mas vou explicar tudo ao senhor.

Bom, tudo começou nessa manhã quando saí de casa para trabalhar e percebi que meus cigarros mentolados haviam acabado. Aí aconteceu o primeiro mal entendido. Quando desci o morro e perguntei ao garoto na esquina onde poderia comprar “aquele cigarrinho especial”, estava me referindo a eles, meus cigarros mentolados. O problema é que, na hora agá, me faltou a palavra certa. Isso me ocorre às vezes, tenho um problema sério para encontrar as palavras corretas. Sofro de transtorno de déficit de atenção. Pode dar um google aí, doutor.

Claro, achei estranho quando o garoto foi me guiando pelo meio das vielas. Ele portava um fuzil?! Poxa, nem reparei. Não lhe disse que sou desligado, doutor? Transtorno de déficit de atenção. Pode dar um google. Então, até estranhei, mas esses cigarros são difíceis mesmo de encontrar e sempre fui da opinião que a gente tem que prestigiar o comércio local, da comunidade. Por isso segui o garoto até o local onde esperava encontrar meus cigarros e onde, por coincidência, estava esse senhor.

Se o reconheci? Vagamente, doutor. Sim, até vejo o noticiário às vezes, mas normalmente não presto muita atenção. Fico só aguardando o último bloco das notícias pra ver os gols do mengão. Ouvi falar do bacana que tinha sido sequestrado, mas nunca imaginei que seria ele.

Por que corri quando a polícia chegou? Força do hábito, doutor. Mas juro que não tenho o que esconder, sou um homem mudado. Estava lá só pelo meu cigarrinho mentolado. Sobre o revólver encontrado comigo, eu não tenho ideia de como ele foi parar na minha cintura. Deve ter alguma coisa a ver com esse meu transtorno. Déficit de atenção, doutor. As coisas me acontecem e eu não percebo, não lembro. O médico me pediu uma chapa da cabeça, mas o plano não cobria e acabei deixando pra lá.

Sei que minha situação é difícil, que meus álibis são falhos, mas juro que as coisas ocorreram tais quais foram por mim narradas, doutor. Lhe dou minha palavra que estou limpo. Se me meti em apuros, foi por conta desse meu transtorno. Déficit de atenção, pode dar um google que o senhor vai entender. Tudo não passa de um mal-entendido. O senhor acredita em mim, doutor, não acredita?

Obs: conto originalmente publicado na Revista Subversa VOL. 13 | N.º 03

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Carlos Barth
Revista Subjetiva

Aspirante a escritor, karateca dedicado e budista relapso.