Daqui da janela
Segredos e axiomas
Daqui da janela eu a vejo ali, sentada sozinha com o cigarro já no final, vestida com roupas largas, o cabelo curto passado na régua. Sua corrente de prata brilha a depender da posição das nuvens que desfilam pelo céu azul de domingo.
Quando ele apareceu, ela já tinha se levantado do chão com aquele sorriso forçado de quem ainda continua obedecendo seus pais mesmo morando sozinha há quase uma década, “sorria, seja simpática que ninguém gosta de menina assim”. Como passamos tanto tempo pensando que nossos pais são sábios e infalíveis? Tanto tempo sem saber que eles também erram? Essa é uma dor que só em terapia a gente aprende a cuidar.
Letícia queria que fossem todos se lenhar, mas por algum motivo ela apenas seguia os protocolos sociais. Era mais indolor do que passar a vida tendo que se explicar. Se era um sorriso o que ele queria receber, um sorriso ele teria, ainda que mecânico.
“Tá chateada com o quê?”
“Nada”
“Nada?”
“Nada não, é só o de sempre”
Daqui eu invento os diálogos, crio toda uma história baseado no meu ponto de vista míope. Não dá para saber ao certo o que eles falaram, mas é um jogo que eu gosto de jogar, mesmo não sendo muito bom nisso. As vezes penso que tudo vai terminar em tragédia, as vezes eu quero que termine em choro e cores vermelhas e me sinto mal por pensar assim. O segredo que luto para esconder é que, na verdade, fico feliz quando tudo termina num afago.
Pode ser um abraço, um tapinha no ombro ou até mesmo um gesto mecânico que nos empurram guela abaixo quando ainda somos jovens e inocentes. Como se, de alguma forma, o tempo não pudesse mudar as coisas que já aconteceram, princípios sagrados, axiomas que a gente nunca vai aprender apesar de trazerem sempre as mesmas respostas.
Mas não vamos perder tempo com isso. É agora que chega a melhor parte.
Ele pega a coleira que fica pendurada atrás da porta da cozinha e o cachorro começa a girar sem parar. O sorriso dela agora é verdadeiro, e isso eu sei porque ela levanta mais o lado esquerdo da boca do que o direito, e faz isso cruzando os braços sobre a barriga num gesto que, a depender de quem o veja, pode parecer contrariedade, mas não, é alegria.
A gente só vai ficar sem saber se essa euforia genuína é por ver o cachorro feliz correndo na praça, ou se é porque ele finalmente foi embora. Prefiro deixar o mistério no ar do que inventar finais mirabolantes.
Saio de fininho, fecho as cortinas e não interfiro mais. Melhor terminar antes que eles voltem do passeio e ela arraste os chinelos pelo chão sujo da casa até chegar na sala e abrir aqueles dois braços como se eles pessassem uma tonelada cada um.