De onde nascem as crônicas?

Leandro Marçal
Revista Subjetiva
Published in
4 min readJan 20, 2020
Lume comunicação

A pergunta-título ressurge de tempos em tempos. Pode ser a cada nova crônica minha publicada quinzenalmente no Juicy Santos ou no CinemAqui, ou quando um recém-conhecido questiona aspectos deste ou daquele texto meu na Subjetiva, no Ludopédio, no meu blog Tirei da Gaveta.

Respondo que elas estão por aí, nas ruas, onde a literatura acontece. No começo, tinha muito pudor em ficcionar. Hoje, digo que é tudo ficção. E não minto. Por não mentir, todas as respostas à pergunta-título são assim, evasivas, vagas, abstratas.

Enquanto lia Refúgio de Sábado, coletânea de crônicas da jornalista Míriam Leitão, lembrei o bate-papo entre ela e Antonio Prata na Bienal do Livro de São Paulo há dois anos. Ela dizia tirar suas crônicas semanais de fatos reais, do seu cotidiano. Ele também, mas com a ressalva de que partia deles para criar uns 70% era ficção nos textos. Prata foi quem me incentivou, sem saber, a descobrir meu próprio meu caminho como cronista.

É curiosa a descoberta do próprio caminho. Li estes e muitos outros cronistas bons, bem antes desses quatro anos como escritor. Com o maior envolvimento com as letras, conheci ainda uns que são menos reconhecidos que o merecido. Meu professor dos tempos da faculdade, Marcus Vinicius Batista, por exemplo, é dos melhores. Seu Quando os mudos conversam é ótimo. Um dia, ao se deparar com a pergunta-título, comentou sobre o processo de escrita na frente do computador ser a menor parte diante da criação mental, no dia a dia, na estruturação de cada um de seus refinados textos enquanto a vida acontece em casa, na rua, no trabalho.

Ao ler Som das Conchas, de Madô Martins, noto que seu olhar é mais otimista que o meu. Consegui sentir o cheiro da praia e esvaziar minhas angústias a cada texto. Tenho um tipo mais ácido, azedo, talvez. Não sei, mas acredito em um reflexo da minha personalidade confusa.

Meu primeiro livro no ano foi de crônicas: Não tô sabendo lidar, da Yasmin Narcizo, me causou uma identificação gigantesca pelas incertezas da minha faixa etária. Não que as outras faixas etárias sejam isentas de incertezas, mas as que conheço são as mesmas vividas por ela.

As crônicas também nascem das incertezas. Também, mas não somente. Já disse que elas nascem das ruas, são gestadas no mar, sua fecundação vem de um olhar diferente. O cronista tem algo semelhante à visão de raio-x do Super-Homem. Onde ninguém vê uma oportunidade de “cronicar”, ele puxa o bloco de notas do celular ou do bolso e faz uma anotação, que descansa dias, semanas ou meses antes de ganhar as páginas de sites, jornais ou revistas que lhe abrem espaço.

(Quando eu tinha um carro e engatinhava na literatura — dei os primeiros passos, meio tortos, às vezes preciso me apoiar nas paredes ou nos mais velhos para não cair -, tinha blocos de notas nos bolsos, no meu falecido carro, ao lado da cama. Não ficava longe de um bom bloquinho e as ideias pareciam brotar como água no temporal)

Deve ser por isso que Machado de Assis dizia: “Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto.”

Eu também gosto. E também gostam outras referências, como Rubem Braga e Clarice Lispector — ela é a maior escritora brasileira e suas crônicas são inigualáveis, uma categoria à parte.

Não me incomodo em responder de um jeito meio escorregadio. De onde nascem as crônicas? Eu sei, mas não sei, sabe? Elas saem, surgem, assim. Eu olho uma situação e sei que ali há uma crônica. Eu ouço alguém dizer que “poderia escrever uma crônica sobre isso”, dou uma risada meio amarela e tento mudar de assunto. Não, não poderia, mas não sei dizer o porquê.

Marina Colasanti, Ricardo Araújo Pereira, Ruth Manus, Tati Bernardi, Humberto Werneck, Ignácio de Loyola Brandão. E Luís Fernando Veríssimo, claro. Não deixo de ler o Veríssimo. E cada um desses que falei mais acima. É quase um ritual religioso. Chega o fim do dia e me sinto estranho se não li o cronista daquele dia, neste ou naquele jornal.

Excelentes cronistas todos esses. Que sabem a diferença entre uma boa crônica de uma mera coluna de opinião. Esta tem seu valor, evidentemente, mas não pode (ou não poderia) ser confundida com a boa e velha crônica.

E a pergunta-título segue assim, meio vaga. Ainda bem. Vou continuar sem a resposta, ou sem uma resposta, mas trazendo nas crônicas um retrato, um momento, um relato, me apoiando nesses gigantes cronistas para olhar mais longe.

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Leandro Marçal
Revista Subjetiva

Um escritor careca e ansioso. Autor de “De Letra: o futebol é só um detalhe” e “No caminho do nada”. Cronista no Tirei da Gaveta (www.tireidagaveta.com.br).