Deixemos emergir a mulher fenomenal que habita em nós

Demanda. Substantivo feminino. 1. Manifestação de um desejo, pedido ou exigência. 2. Procura, ação ou efeito de demandar.

Renata Costa
Revista Subjetiva
6 min readDec 6, 2017

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Dia desses eu pensava sobre a dificuldade que tenho de atender às minhas próprias demandas. Quando se trata de mim, a atenção fica difusa e desorganização e lentidão vira pleonasmo.

Me dei conta disso quando me vi auxiliando algumas pessoas em um projeto, em pouco tempo, fui até elas, escrevi, gravei vídeo, viajei e no fim confesso que gostei bastante do resultado. Quando me perguntaram:

— E você, Renata? Não vai inscrever um projeto seu?

Respondi sem graça que não, eu estava escrevendo dois projetos e auxiliando um terceiro, mas em nenhum momento considerei que poderia fazer algo a partir de mim mesma.

Eu cresci na década de 90, a ressaca da ditadura no Brasil se revelava no cotidiano como o país das bandas de rock, dos grupos de axé, assisti e entendi pela primeira vez o que era uma Copa do mundo quando assisti na sala de casa Roberto Baggio perder aquele pênalti ao chutar para fora em 94, assisti Xica da Silva na televisão na novela. Mas o filme! Ah! O filme! Assisti numa “Sessão da Madrugada”, me lembro vividamente do encanto que senti pela atriz Zezé Mota.

Atriz Zezé Mota em Xica da Silva. Fonte: Google

Desde muito cedo aprendi a fazer uma porção de coisas, como ir ao Banco, pagar conta, fazer compras, fazer comida, cuidar do irmão mais novo, e me sentia cada vez mais independente conforme ia aprendendo coisas novas.

Com o passar dos anos, me tornei uma pessoa muito solícita, e segundo uma amiga numeróloga: tenho excesso de 2 no nome. Não sabe o que é ter excesso de 2? Eu também não sabia, segundo ela isso faz parte de uma pessoa extremamente diplomática, o que considero no final das contas uma coisa boa.

A grande questão é que fui me dando conta do seguinte fato: quando se trata da demanda dos outros, como no caso que contei dos projetos minha dedicação é intensa, afetuosa e expressiva, quando se trata de mim, aí são outros quinhentos.

Se dar conta de coisas ruins que fazemos conosco mesmos na vida tem dois efeitos:

1º — Nossa que bom! Me dei conta disso! Maravilhoso.

2º — Putz! Eu faço isso? No século XXI? Ainda? Eu faço isso comigo?

O caso é que agora isso está jogado em cima da mesa, e eu estou aqui tentando lidar. Ler e pensar sobre a vida de outras mulheres tem me mostrado como somos criadas no intuito de atender expectativas de outras pessoas que não nós mesmas.

Uma propaganda que assisti de um programa deixou essa minha percepção ainda mais evidente quando pensava sobre escrever este texto. Com o título “Escândalos na Imprensa”, o programa noticiava o quanto uma estrela da música era mal sucedida em relacionamentos e tentava esmiuçar em detalhes o suposto fim triste de seus casamentos. Eu achei graça, enquanto aos 50 anos George Clooney era um excelente partido (apenas não havia se decidido), a mulher até mais jovem que ele, era a pobre-menina-rica. A mulher que escolheu o dinheiro e o sucesso e perdeu o amor, seja lá o que isso quer dizer.

A antropóloga americana Sherry Ortner em análise da construção textual da agência escreveu uma breve análise dos contos de fada de Grimm, focalizando nas personagens femininas. Segundo a pesquisadora, em boa parte das histórias as heroínas estão no modo “heroínas vítimas”, elas são protagonistas que não tomam a iniciativa, as coisas acontecem à elas no desenvolvimento das histórias, mas não a partir delas.

Ainda assim em alguns momentos, essas personagens assumem a agência ou seja se tornam ativas em algum momento do conto, o que logo acaba pendendo para os heróis homens. No fim dos contos se são adultas tudo termina em casamento, e se são crianças o fim é ao lado da família.

As personagens femininas com maior capacidade de agência são as bruxas e madrastas segundo Ortner, seu final é sempre terrível: tortura, dor, morte, castigo ou usando as palavras dela:

“O príncipe não pode ser herói se a princesa puder salvá-lo.”

Dentro da política cultural de diferença e desigualdade de gênero que informa os contos, porém, crescer significa que as duas partes desta relação — que no final das contas é desigual — não podem ter agência.

E de repente cá estou eu, refletindo sobre como no século XXI ainda estou em busca de atender as demandas dos outros com mais seriedade do que as minhas próprias. O desafio que encaro tem a ver com processos subjetivos, mas também com algo que é estrutural e estruturante.

Assim é como se houvesse em cada mulher, duas mulheres. Existe aquele que encena e representa atendendo a demanda; e existe uma outra dentro de nós que vem à tona em alguns momentos para buscar ar. Como no fim de um mergulho profundo, quando se começa a nadar em direção a luz do sol e a cabeça ainda não irrompeu de novo para fora d’água.

Todas nós somos duas mulheres.

Qual caminho seguir?

Bater as pernas até a superfície, sentir o sol na pele e a água secar no corpo, e nadar batendo as pernas pelo mundo, pela rua, pela casa e onde a outra quiser andar. Crer em nós mesmas como mulheres é dar um voto de confiança a cada mulher dividida em duas, é unir-se com algo potente.

A outra emerge a cada trabalho, a cada atitude, a cada experiência, descobrir que a psicanálise atualmente pode ser exercida por pessoas que não são médicas no Brasil tem a ver com a atuação da psicanalista e socióloga negra Virginia Bicudo nos anos de 1940 , cuja trajetória foi estudada pela pesquisadora Janaína Damaceno. Conhecer e ouvir histórias das mulheres jongueiras do Norte e do Sul do Espírito Santo, perder o ônibus em uma das minhas idas a campo e receber o convite de uma mulher para ficar em sua casa caso eu não conseguisse seguir o itinerário que havia planejado.

Jongueiras em encontro realizado no norte do Espirito Santo-2017

Pensar na minha avó que nunca se casou, teve o primeiro filho aos quarenta anos há cerca de setenta anos atrás e que tinha o rosto marcado por uma cicatriz pois tinha apanhado de arreio. Lembrar das noites na casa dela no Rio de Janeiro enquanto eu e meu irmão a observamos sair para dançar, já que sua filha e minha tia achava um absurdo alguém dançar na idade que ela tinha.

Eu venho de uma linhagem de outras, e todas nós também. Deixemos emergir a mulher fenomenal que habita em nós e que foi cantada por Maya Angelou.

Maya Angelou- Escritora

Não estou afirmando que vai ser fácil modificar minhas atitudes e agir de acordo com demandas e projetos meus, mas a gente tem que viver e não ter vergonha como já cantaram por aí, tem que poder viver desavergonhadamente, de peito aberto para mergulhar e emergir de dentro do mar.

Referências

GOMES, Janaína Damaceno. Os Segredos de Virgínia: estudo de atitudes raciais em São Paulo (1945–1955). Tese de Doutorado em Antropologia. PPGAS: USP, 2013.

ORTNER, Sherry. Uma atualização da teoria da prática in: Conferências e Diálogos: Saberes e Práticas Antropológicas. Organizadores: Miriam Pillar Grossi, Cornelia Eckert, Peter Henry Fry.

______________Poder e projetos: Reflexões sobre a Agência. in: Conferências e Diálogos: Saberes e Práticas Antropólogicas.Organizadores: Miriam Pillar Grossi, Cornelia Eckert, Peter Henry Fry.

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Renata Costa
Revista Subjetiva

Pesquisadora, em Ciências Sociais,historiadora e outras funções avulsas