Descobri que sucesso é ser sozinho

Sendo cientista social, gay & coachee

_erinhoos
Revista Subjetiva
12 min readJul 22, 2017

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Ato I: As Ciências Sociais

«Vocês não vão mudar o mundo».

Dita sem lubrificante em uma atividade da semana de eventos que marca a primeira semana de graduação, a frase soava como um aviso prévio àqueles e àquelas que, como eu, tinham optado pelo bacharel em Ciências Sociais em função da afinidade ideológica com a transformação social. É claro que eu estava interessado nas ferramentas que poderia acessar no ambiente acadêmico, mas minha inspiração, o sangue e a carne da minha escolha era a frutificação de várias sementinhas plantadas na minha cabeça ao longo da adolescência por Ari Almeida, Hakim Bey, Aldous Huxley, George Orwell, Raoul Vaneigem, Anthony Burgess, Karl Marx e… Minha professora de Sociologia.

Os professores e professoras estavam de certa forma corretos em lembrar nós calouros de que não bastava estar matriculado em um curso onde se lia com frequência autores e autoras densamente comprometidos com a esquerda, para promover a «revolução»— seja lá o que este gasto termo signifique. Contudo, imersos dentro das preocupações acadêmicas que se retroalimentavam dentro dos confortáveis aposentos do funcionalismo público, esses doutores bem intencionados nunca nos lembravam sobre a aplicabilidade do que aprendíamos para o mercado de trabalho — e tampouco os alunos assim o demandavam. Seduzido pela produção do conhecimento e pelos estudos de gênero e sexualidade, me engajei na área acadêmica. Vivi de bolsas todos esses anos e, agora que estou saindo do mestrado, encontro um mercado profissional árido e um coeficiente de empregabilidade burlesco para quem se formou em antropologia — ou seja, hoje mastigo com enfado os amargos frutos daquela sementinha ideológica de sete anos atrás.

Aquele bom e velho tema anarco-socialista.

Várias ironias coexistem nessa historinha. Uma delas é a seguinte: durante todo meu aprendizado no Ensino Superior tive que estar atento à importância dos coletivos, grupos sociais, coesão e unidade social, associações, da assim chamada sociedade. Não ignorei em nenhum momento que a sociedade que reconhecia como minha clamava pelo individualismo como condição e modo de vida. Foi, contudo, confrontando a crueza do campo de oportunidades profissionais dignas para cientistas sociais que finalmente entendi como esse individualismo opera através do isolamento social — seja pela via da exclusão financeira, seja pela ideologia do sucesso, ambas invenções capitalistas. Dentro de uma estrutura fortemente marcada por desigualdades no acesso a direitos, o individualismo é substancializado e polido de acordo com o referencial de que tudo depende de você — inclusive, passamos a enxergar as associações como instrumentos usados justamente para alcançar nosso próprio sucesso.

Se eu fizesse um exercício radical para deslocar como parâmetro não a crítica e a análise sobre o individualismo (como as várias que li ao longo da minha formação), mas o individualismo ele próprio como ponto de partida para analisar o mundo, eu teria que concluir que aquela primeira frase (vocês não vão mudar o mundo) era impecavelmente lúcida: a verdadeira falácia seria a própria transformação social, e o sucesso seria fazer com que tudo e todos passassem a orbitar ao seu redor.

Decorre daí uma questão paralela: todos querem ser esse Sol. E o preço que podemos pagar por isso é preocupante em tempos de depressão endêmica. Se não vivemos em função da tarefa de alcançar o «sucesso», reconhecemos, quando o temos, que não precisamos atribuí-lo a mais nada senão a nós mesmos. O Sol está ali, seu campo gravitacional movimenta tudo ao redor, mas ninguém pode chegar perto dele. Uma estrela está condenada a morrer sozinha.

Ato II: O CrossFit

Recentemente, um garoto de dezessete anos foi apunhalado no pescoço pela própria mãe em função de sua identidade sexual — um drama noticiado como um delírio anacrônico, sobretudo se levarmos em consideração a construção pública corrente de um consenso sobre a plasticidade cada vez mais patente da ideia de família. Com efeito, tendo em vista a obscenidade da circunstância do crime, a Medeia homofóbica de Cravinhos segue sendo tenazmente amaldiçoada nas redes sociais em função de seu gesto filicida.

Este caso serve aqui de emblema para desenvolver uma questão que cada vez mais vem sendo discutida dentro da minha rede de gays escolarizados de classe média e moradores de um dantesco conglomerado urbano: a solidão gay. A controvérsia ganha força em um contexto em que vigem duas temporalidades em negociação: a família «tradicional» e a família «moderna». As convenções domésticas que seguem apostando na sacrossanta legitimidade da heterossexualidade como modelo unívoco de família geram com frequência cismas entre aqueles membros cujas identidades soam dissonantes em relação aos valores tradicionais cuja observância se relaciona ao ideal esperado de família. Nesse sentido, muitos gays de classe média enxergam no estilo de vida amparado pelo mercado, nos serviços segmentados e na vida em centros urbanos uma forma de estabelecimento de redes e expedientes acolhedores no que se refere à identidade sexual.

Aqueles que no curso dessa diáspora gay ocupam determinadas vizinhanças, acabam ratificando um vínculo com um modo de viver, perceber e olhar o mundo que nem sempre se traduz em alento, senão frequentemente se firma em ideais individualistas sobre o mundo e relações superficiais e pouco edificantes.

Hubert, interpretado por Xavier Dolan em filme de sua direção, Eu Matei Minha Mãe, de 2009.

Nada sobre isso havia se tornado tão evidente para mim até passar a frequentar com regularidade a academia — ou traçar o caminho pouco intuitivo de gay-desconstruído-das-Ciências-Sociais para o mundo do padrão (terei em breve oportunidade de falar sobre esta falsa oposição por aqui). Sobre o espaço de treino, digo o seguinte: trata-se de uma máquina de supressão do tempo, onde as diferenças de gênero são ritualizadas de acordo com referenciais de masculinidade e feminilidade deflagrados através de silhuetas, roupas, estilos, assuntos e até as rotinas determinadas pelos treinadores, que definem que máquinas são adequadas ao seu gênero.

É contudo o espaço que povoa fortemente o imaginário representacional do erotismo gay: se o pornô não é ambientado entre supinos e halteres, supõe-se ao menos investimento de anos por seus atores em práticas de modelagem corporal — que por sua vez estão frequentemente associadas a dietas ascéticas e uso de fármacos e anabólicos. O corpo sexualizado do pornô, em contraste com o corpo afetivo heterossexual da novela, é ratificado dentro das convenções do mercado rosa — basta olhar para qualquer flyer de balada. O acesso a esse corpo estilizado de acordo com os referenciais do «esporte» e da «saúde» — embora em nada tenha a ver com estas coisas — o eleva ao estatuto de utopia; trata-se de uma incansável referência coletiva, isto é, os corpos e seus entendimentos se organizam sempre contra ou a favor de um arquétipo de pessoa. Quer se rompa ou endosse, é o homem alto branco e atlético que encarna esse arquétipo; quando se está nesse corpo, o que se deflagra é a ansiedade acerca de sua liminaridade, seja pela gestão disciplinar sobre si próprio, seja pelo pânico de enfrentar o fato de que seu metabolismo fatalmente desacelerará em breve.

O apego a esse corpo utópico, por assim dizer, em outras palavras, significa estar sempre em crise em relação a si. Aqui, a infelicidade com o espelho é crônica. Os espaços gays com frequência reproduzem silenciosamente essa selva onde os corpos concorrem em valoração a partir de uma cruel ética das escolhas dentro do mercado do afeto. E é nesse mundo árido, onde por vezes o caimento de uma camiseta e a lista VIP parecem importar mais do que o cuidado mútuo, que muitas vezes os sobreviventes da homofobia familiar encontram refúgio.

Tenho me encontrado comigo mesmo, contudo, com e apesar dos treinos. Descobri que, de fato, você passa a ser mais desejado após vários meses de treino regular — além, claro, na melhora do humor, da disposição e do metabolismo — , o que é ótimo para um social addicted como eu, que estou sempre por aí trocando ideia com todo mundo e flanando pela cidade. Pago, claro, alguns preços por isso; centenas de golpinhos mensais em infraestrutura e suplementos, insegurança quando estou fora da rotina — e da «forma» — e que «forma é essa?» — , perceber que as pessoas te elogiam mais — e eventualmente te assediam — e tremer com o fato de que elas vão parar de te elogiar quando você voltar a engordar e envelhecer, e a solidão quando estou treinando — fazer academia não é um esporte de grupo, senão um esporte que se dedica sobretudo a fazer de si seu próprio Sol — que adoro ser.

Nesse sentido, destaco minha experiência recente como praticante de CrossFit, a prática esportiva da moda entre o povo de classe média. Se, por um lado, vige aí um culto pelo corpo que @s desconstruíd@s denunciam como uma obscena apologia da hegemonia encarnada nos torsos descamisados dos CrossFiteiros (o meme «Wow! You do CrossFit! Tell me more about gay pride»), por outro lado, pululam aqueles memes que identificam o esporte como «gay» ou «de gays», fazendo chacota justamente acerca de uma masculinidade exibicionista e fraternal (são piadas homofóbicas, creio, a despeito de seus emissores serem gays ou héteros, já que se baseiam no essencialismo de identidade sexual). Ambos os lados me irritam.

Conto o seguinte: que em uma dessas noites eu estava lá no box (que é como chama o lugar onde se treina) em uma aula razoavelmente cheia. Éramos em quinze, todos homens, todos brancos, todos residentes de um bairro de classe média com alto IDH e boa infraestrutura, e provavelmente a maioria entre nós era população economicamente ativa. Era um raro momento em que eu estava supostamente, portanto, entre «iguais» e, contudo, não havia a menor condição de desfrutar de qualquer sentimento de pertencimento — aquele sentimento que eles todavia partilhavam entre si, que transbordava em conversas e maneirismos. Veja bem… Não sei se a hipertrofia muscular resulta em isolamento social. Mas sei que, sem nenhuma injúria homofóbica, eu me sinto com muita frequência sozinho dentro daquele box — como existem por aí muitos filhos se sentindo sozinhos quando são abandonados pelo amor materno — por ser gay.

Ato III: Coach profissional

Em nenhuma das etapas da minha vida o falso truísmo do self made man gritou tão alto como durante as recentes reuniões com meu coach — e eu não estou falando do coach do CrossFit, mas sim do «coach profissional». Basicamente, trata-se de um cara — ou uma mina — que domina uma metodologia voltada para a organização, o planejamento e a execução calculada e otimizada de um determinado objetivo. Durante as «sessões» você é apresentado a diversas ferramentas destinadas a te ajudar na empreitada identificada e esquadrinhada e, de fato, embora por ora os resultados não sejam deveras palpáveis, acredito que a metodologia pode se mostrar útil em breve, ou no médio prazo, para mim.

Existem duas ressalvas sobre a mesma, contudo, que devem ser mencionadas, e que estão interconectadas. A primeira é um equívoco epistemológico baseado na atribuição de um poder de transformação hiperbólico do e a partir do indivíduo. O ponto de partida de qualquer mudança positiva depende única e exclusivamente de procedimentos operados pelo coachee (tipo, o cara orientado pelo coach), inclusive a constatação de um cenário mais ou menos realista para pôr em marcha as tarefas delimitadas ao longo do processo.

O outro aspecto, mais irritante, é o discurso motivacional que impregna e movimenta as práticas no coaching, que é o mesmo que enche o coachee de vontades e expectativas — ou seja, latente cenário ideal para a frustração.

A motivação possui um sujeito privilegiado: eu! O coach não oferece uma reflexão acerca das condições em que alguém se encontra profissionalmente insatisfeito — não é, ademais, sua tarefa — , mas sim um treino cujo grande valor é o alcance de um objetivo; uma vez que este foi definido, a única coisa que importa é tão somente atingi-lo. «O próprio conceito de coach [treinador], que vem do mundo dos esportes», lembra o filósofo dinamarquês Svend Brinkmann, «pressupõe que você está competindo com os demais para vencer o jogo». A diferença é que no CrossFit a competição é matizada e se encerra no universo do esporte; quando passamos a encarar o mundo como um work of the day meritocrático, as pessoas e coletivos — como já disse no início do texto — são instrumentalizados de acordo com o imperativo do próprio sucesso, e nada disso é tão pornograficamente evidente como no caso do LinkedIn.

Por um lado, tenho muito orgulho da maneira como organizei meu currículo nessa plataforma — que se pleiteia rede social. Contudo, é muito triste ver como parte das nossas esperanças profissionais passam a depender da conversão das relações interpessoais — via espetáculo — em oportunidades laborais e na transformação de afetos e avatares em possíveis colegas de trabalho, reduzidos a categorias como «cargo atual», «experiência» e «formação acadêmica».

Ilustração de Pawel Kuczynski.

O LinkedIn é um exemplo elucidativo desses tempos em que os vínculos com o mundo são condicionados por diferentes matizes do individualismo. O mercado de trabalho para os cientistas sociais emerge em alto contraste com a formação ingenuamente ética e intelectualista consagrada ao social. O apego à sociedade mesma (e não tão somente à transformação social) evanesce quando o que está em jogo é a urgência em «pagar os boletos». Vamos aprendendo que o segredo da felicidade está longe dos projetos coletivos.

Precisamos de algo que nos dê segurança, portanto. Em tempos de espetáculo, o individualismo aposta as fichas da auto-estima na imagem e sua auto-construção. O apego corpólatra à silhueta, sobretudo para aqueles que sistematicamente são desalojados do calor familiar e do afeto representacional — os gays — , vira uma espécie de valor paralelo; os frágeis índices de privilégio vigentes nas baladas e redes sociais compõe um estilo de vida marcado pela efemeridade, instabilidade e rígidos padrões de beleza.

Se a aposta no corpo é uma aposta na crise, o que dizer quando o mundo se torna um incansável e cruel Monopoly (Banco imobiliário)? Quando seu valor é o «sucesso» — outro termo que eu realmente não sei pra que serve — , e ele depende de você, o diabinho da frustração não sai do seu ombro, ainda que você logre. É a mesma fórmula do «suicídio egoísta» de Émile Durheim; se o indivíduo não padece pela pressão e pelo estresse, ele o faz pelo fracasso e pela depressão — e a ansiedade é a altissonante paisagem sonora comum.

Aqui brevemente compartilhados, esses dilemas autobiográficos são pequenos flagrantes de um mundo — aquele em que vivo, para o bem e para o mal — que tem adotado o indivíduo e seu sucesso (ou o sucesso e seu indivíduo) como valores fundamentais, e o individualismo e sua frivolidade como modo de vida privilegiado. Não à toa, estamos falando de um mundo que concebe e concebeu gigantescos contingentes humanos de gente infeliz e solitária. A modernidade é uma fábrica de solidão — operando no máximo da sua capacidade produtiva no neoliberalismo.

Nessa era de abandono da coletividade e de afeto rarefeito, revisitar os valores que governam nossas ações e pensamentos não é apenas uma diretiva de cunho ético, mas também uma medida preventiva de saúde mental. Não soa alentador o fato de que as ideologias políticas se encontram em franca ruína no Brasil, e que a confiança nos valores cívicos encontra-se avariada — inclusive tendo em vista a cada vez mais explícita subsunção dos direitos sociais e da decência institucional à força da grana e seus detentores. Resta, como um grito de alerta, atentar para o insight de Svend Brinkmann:

É importante estar atento para não cair em discursos motivacionais baratos. Quando a economia de um país vai mal, é quase constrangedor ouvir alguém dizendo frases como: «Basta que você esteja motivado para ter sucesso». O título original do meu livro, em inglês, é Stand firm [fique firme]. Mas para um país que está enfrentando múltiplas crises, como o Brasil, seria importante acrescentar a palavra «juntos» a essa mensagem: «fiquem firmes juntos». É importante não transformar a solução em mais um projeto individual. Pensar só em si mesmo é uma tentação muito grande em tempos de crise. Mas eu espero que as pessoas percebam que, a longo prazo, será melhor para todo mundo se buscarem soluções coletivas para os seus problemas.

Não sei que sentidos podemos atribuir ao «sucesso» nessa empreitada por um mundo mais afável, confiável, caloroso. No mundo utópico que descrevo neste derradeiro parágrafo, o sucesso não seria outra coisa senão o orgulho de olhar para as relações sociais a partir dos livros que li ao longo da minha formação acadêmica, e não a partir do imperativo epistemológico do indivíduo. Sucesso seria se, em lugar da superficialidade do espetáculo, a «comunidade gay» se ancorasse em torno do bom e velho apoio mútuo e da luta contra a homofobia. E se, em lugar de admitir o mundo como um mapa de trincheiras entre robôs, sucesso fosse restaurar a empatia como valor fundamental das trocas humanas.

Não sei se «sucesso» pode ser tudo isso. Mas se não puder ser, tudo bem. Só me restaria dizer, com base em toda essa reflexão, uma única coisa…

Sucesso, estou cagando pra você!

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_antropólogo, barista informal, errante incorrigível, cantor de karaokê, sérião nas horas vagas