Deviam ter lhe avisado, mãe

Dayanne Dockhorn
Revista Subjetiva
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2 min readApr 17, 2019

Deviam ter lhe avisado, mãe
que eu não vim a essa vida
a passeio.

Naquela noite, madrugada adentro
naquelas horas que só pertencem aos hospitais
numa sexta-feira, segunda filha
ninguém lhe disse nada?

Ninguém lhe disse que escolheram para mim
as partes mais moles e sensíveis de ti?
Que colocaram em mim
o fardo de ser um novo caminho
e abrir seus olhos?

Entre todos os recém-nascidos da maternidade
ninguém apontou para mim e lhe disse
que eu não saberia caber
dentro do meu corpo
que eu era nova demais
para ser lar de uma energia tão antiga?

Ninguém lhe disse
que eu transbordaria em lágrimas
por seis meses ininterruptos?
Eu ouvi essa história
mais de um milhão de vezes
e naqueles meses sem dormir
entre médicos e mães-de-santo, você nunca suspeitou?

Meu pai nunca lhe disse
que estava cansado
que não havia colo suficiente,
silêncio suficiente, conforto suficiente
para me fazer descansar?
Ao me ver crescer, você nunca se perguntou
por que eu era tão parecida e tão diferente
de você? Você não suspeitou, mãe?

Enquanto eu me multiplicava
com cachinhos no cabelo
e rabiscava histórias
no diário da Barbie
e fazia poesias
sobre uma boneca chamada Bia
ninguém lhe disse nada?
Ninguém lhe disse
que eu não vim a passeio?

Deviam ter lhe avisado, mãe
que o trabalho aqui dentro
começou no primeiro de outubro e
nunca mais terminou.

Daí todas as lágrimas e
todos os poemas, e
apesar de todas as estradas
todas as horas entre ir e vir
todos os ventos que conheci
que não cabem em uma foto
a cada nova esquina encontro algo que me transforma
acordo todos os dias nesse corpo
mas nunca sou a mesma

porque o trabalho aqui dentro
não cessa
nunca.
Comecei no primeiro de outubro e
nunca mais descansei.

Deviam ter lhe avisado, mãe
mas talvez você já soubesse
os furacões, afinal
sempre recebem nomes como o meu.

Sou nômade, poeta, escritora. Arqueóloga e antropóloga por formação. E também sou muito mais do que isso. Meu nome é Dayanne. Se você gostou do poema, me escreva! E leia mais:

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Dayanne Dockhorn
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