Dez anos raivosos depois

Maíra Ferreira
Revista Subjetiva
Published in
6 min readDec 5, 2017
Ilustração: Livia Fălcaru

Tenho pensado muito em como o contato com o feminismo vem transformando as minhas relações na última década — inclusive com os homens. Esses dias, li um texto ótimo sobre as diferentes posturas masculinas diante do movimento feminista: segundo a autora, há os homens que entendem a importância do debate e se posicionam (entre inevitáveis escorregadas) a favor da luta, os que fingem que entendem publicamente porque sabem que hoje em dia pega mal se colocar abertamente contra e há os que não têm nem vergonha de se colocar abertamente contra e sentem até um orgulho de propagar o que propagam.

Lendo esse texto, lembrei, enfim, da minha versão de 10 anos atrás, quando — ainda na adolescência — eu já acumulava histórias terríveis sobre homens. Quando eu, aos 13 anos, já escutava umas cantadas assustadoras na rua e sentia um medo imenso daquelas criaturas cheias de dedos e olhares. E até mesmo quando eu, carregando todo o amor e a devoção que eu sentia pelo meu pai, também era forçada a ouvir os comentários pejorativos dele sobre a aparência das repórteres na TV (comentários que eu projetei na minha autoimagem por mais anos do que posso contar). A equação era simples: os homens eram uma ameaça. Os homens me faziam acuada, insegura, diminuída. Os homens me davam tanto medo que eu cheguei ao consultório da analista aos 18 dizendo “eu acho que fui estuprada e não lembro” (não, eu não fui, as cicatrizes eram de outra ordem). E, se eu não era capaz de me relacionar com eles, é porque eu devia ser lésbica. Era essa a minha conclusão adolescente pra um enigma complexo demais para ser percebido até então. Na minha cabeça, estava tudo resolvido.

Levou muito tempo até eu aceitar que, sim, eu me sentia atraída por homens e eu não era capaz de mudar isso. Precisei de alguns bons anos de análise até desconstruir essa minha insistência em fechar os olhos e torcer para a atração desaparecer magicamente. Precisei de alguns bons anos de análise para trabalhar o medo, o medo imenso, o medo intransponível, o medo diário, o medo dos estranhos em ruas escuras mas também dos conhecidos, o medo do gas lighting, das fotos expostas, dos relacionamentos abusivos, das possessividades que terminam em mortes, das agressões, das violências, dos estupros. Levou tempo até eu permitir que algum homem encostasse em mim — e, mesmo quando encostava, era comum eu só dar chance aos casos perdidos, que eu sabia que não levariam mais do que 1 mês para ir embora.

Conforme eu mergulhava no feminismo, dois sentimentos se espalhavam em mim: força e raiva. Força porque, perto de outras mulheres, me ligando a elas, me inspirando nelas, trocando com elas, eu já não me via mais diminuída. Nós éramos imensas. E frequentemente raivosas. Porque é claro que a gente tá com raiva. Como a gente poderia não estar depois de tudo? Como a gente poderia, ainda, depois de tudo, pedir licença delicadamente e não sentir essa vontade de entrar já com o pé na porta, destruindo qualquer resquício de parede? A minha questão era: de que forma eu posso, então, conciliar essa força raivosa (e potencialmente transformadora) com a minha necessidade de me relacionar com esses mesmos homens que, durante tantos anos, voluntária ou involuntariamente, me diminuíram?

Nas minhas relações, particularmente, o feminismo vem encostando aos poucos. Se, anos atrás, eu me vi, repetidas vezes, nas mãos de homens que me diminuíam, nas mãos de homens que gostavam muito da ideia de me ter nas mãos, de abusar de toda e qualquer assimetria entre nós dois pra se agigantar em seu pedestal, hoje, eu — pela primeira vez — começo a conceber uma nova dinâmica. Digo começo porque, de fato, é ainda um começo. Esse ano, quando conheci um cara que parecia disposto a construir um relacionamento saudável comigo, meu organismo reagiu na mesma hora: a metade direita do meu rosto ficou completamente empolada. Contei no Facebook e uma amiga, psicóloga, surgiu com a pergunta chave: “como anda a sua relação com o masculino?”. Ela emendou dizendo que a pele é o órgão que marca o contato entre a gente e o mundo, entre a gente e o outro. Minha metade empolada estava deixando nítida a resistência em permitir o contato com o masculino. Eu marcava de sair com ele e desmarcava logo depois, ancorada pelas faltas de tempo, pelo mal-estar, por qualquer razão que camuflasse o meu medo.

Contei isso pra minha amiga e ela respondeu com outro tapa na minha cara: “talvez você esteja com medo de sair com ele e encontrar um furo na sua crença negativa sobre os homens”. Lembro do que outra amiga já tinha me falado, anos atrás: “você escolhe homens horríveis porque você quer comprovar a sua teoria de que todos os homens são horríveis”. Lembro do meu pai, a melhor pessoa que eu já conheci, mas reproduzindo frequentes falas misóginas. Lembro do meu pai, a melhor pessoa que eu já conheci, mas que transformou, bem cedo, sem nem perceber, a minha autoimagem em um tormento. Lembro de todos os homens com quem já me envolvi, lembro da sensação profunda de desvalorização, lembro de me sentir um objeto, lembro de permitir que me tratassem como um objeto, lembro de tudo que aceitei porque era o que tinha pra hoje, lembro do apaixonamento arrebatador por todo homem que fosse difícil, inacessível, claramente indisponível para se relacionar em um nível mais profundo comigo, lembro de todos os homens emocionalmente abertos dos quais eu fugi porque o medo de permitir que eles se aproximassem de mim o suficiente para me ver vulnerável era mais forte que eu.

E lembro do cara que conheci esse ano, já dando seus sinais de afastamento, provavelmente percebendo as minhas tentativas de boicote. Como explicar para uma pessoa que você quer se mexer, mas não consegue? Dando certo ou não com ele, ainda assim, eu pude sentir um fôlego ao pensar que essa talvez tenha sido uma boa oportunidade para rever esse nervo exposto que eu venho escondendo com muitas camadas de roupa. Depois de 10 raivosos anos de questionamentos e embates e rancores, eu me deparo com a necessidade de reformular a minha relação com os homens. Reformular a raiva para que ela permaneça naquele espacinho restrito, uma força raivosa transformadora, mas não amarga. Uma força que continue me conduzindo aos importantes questionamentos e embates, mas me alivie o rancor, a angústia, o ácido na boca. Depois de 10 anos de medo, relações doentias e bloqueios, eu consigo, enfim, sentar e escrever esse texto, um pouco chorando, um pouco morrendo, mas sentar e escrever esse texto que talvez seja o princípio da catarse que eu precisava.

A palavra tem dessas coisas. Através dela, encontro a adolescente acuada que fui um dia, encontro a adolescente raivosa, a mulher que aprendeu a ser desejada pelos homens mas nunca acolhida por eles. Através dela, encontro meu pai reproduzindo o que aprendeu sem ter a menor ideia do impacto daquelas falas em mim. Encontro meu talvez-futuro-quem-sabe-hipotético-filho-homem, que vai crescer em um mundo ainda violento para mulheres e vai ter nas mãos a chance de tomar uma postura diante disso — ou não. E encontro, também, a chance de revisitar as minhas próprias construções de masculino, o meu rancor, a minha mágoa, a minha dor, as minhas consequentes impossibilidades. Se passei os últimos 10 anos me fortalecendo enquanto uma mulher que questiona a lógica machista, enquanto uma mulher-fortaleza, uma mulher-rocha, uma mulher armada até os dentes, agora vejo que talvez eu tenha precisado desses 10 anos pra chegar até aqui, agora, e ter condições de baixar a guarda pro outro, deixar minhas defesas no chão e tentar — pela primeira vez — me permitir a abertura. Sem desmoronar.

Ilustração: Livia Fălcaru

--

--

Maíra Ferreira
Revista Subjetiva

Minha Carrie Bradshaw interior não resiste a uma divagação. Escrevo prosa, poesia e textões sobre o caos da vida. http://instagram.com/mairacomacento