Diário da Quarentena

Todo dia eu faço tudo sempre igual

Nickolas Ranullo
Revista Subjetiva
Published in
4 min readMay 24, 2020

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Um beijo na namorada que sai pra trabalhar. “Bom trabalho, amor”, eu digo com a voz ainda carregada de sono. Uma bocejada. Me espreguiço na cama. Olho o teto branco sendo desenhado com a sombra da cortina por alguns minutos. Me levanto.

Abro as janelas da sala. A porta. Dou “bom dia” para Camila – minha planta de estimação. Sim, ela tem um nome. Na verdade, seu nome é também sua espécie. Ela é uma “comigo-ninguém-pode”. Nunca pensei que conversaria com plantas, mas… Descobri que assim como eu, elas também são ótimas ouvintes.

Na varanda do apartamento, me espreguiço mais uma vez, agora na esperança de estralar minhas costas. Suspiro aliviado quando consigo. Ainda na varanda, olho para as telhas da garagem. Presto atenção em como a luz do sol fica sobre elas. Me divirto com os passarinhos que nela aterrissam e que se deliciam com as mangas que ali caem graças a árvore próxima.

Volto pra dentro. Cozinha. Lavo a garrafa de café. Encho a chaleira. Enquanto a água esquenta, lavo também a louça que ficou da noite anterior. Enquanto passo o café, faço o story para minhas redes sociais. Caneca abastecida. O cheiro preenche os ambientes.

Me sento na sala e começo a ler as notícias do dia. Eu não sei dizer o que deu errado ou quando tudo passou a parecer tão errado pra mim. Engulo a raiva e a descrença no ser humano com um bom gole de café. Nem só desgraça eu vejo. Me divirto com a forma que o brasileiro, aparentemente, não leva nada realmente a sério – e me incomodo por exatamente o mesmo motivo. Rir de tudo também é desespero.

Tenho um enteado. É mais ou menos nessa hora do dia que ele termina sua aula e passa pela sala em direção à cozinha. Trocamos um “bom dia” e as conversas começam. Falamos sobre suas aulas de química – e fica em mim a sensação de que eu não fiz ensino médio da forma correta. Falamos sobre política, já que ele é curioso sobre isso, mas não entende muita coisa – eu também não. Aliás, acredito que ninguém entende de política. Nem os especialistas. Os políticos, então, muito menos. Falamos sobre as histórias que ele cria para suas sessões de RPG . De vez em quando parece que me perco em tanta criatividade. De vez em quando, não só parece como realmente me perco.

Borrifo as plantas. Monstera. Monsterinha. Asplênio. Hera. Jibóia. Phillodendron – pra mim, apenas Phill. Falsa hortelã – nem nas plantas se pode confiar muito. Elba. Camila – olha, folha nova! Na minha vida de “cuidador de plantas”, toda nova folha é um misto de felicidade e alívio por estar fazendo a coisa certa.

A hora do almoço é relativamente corrida. Minha namorada volta pra casa e num piscar de olhos já precisa retornar para o trabalho. A vida é um movimento incessante – e, por muitas vezes, muito interessante de se observar.

Vou ao mercado durante a tarde. De máscara e tentando ficar longe das pessoas – eu já fazia essa última parte antes mesmo da quarentena. Apesar de paulista, creio que tenho alma mineira. Amo trem – quando não estão cheios de gente, claro. E amo também os pães de queijo. Por isso sempre os busco quentinhos no mercado durante a tarde. É pro café. Mais um. E pra ajudar a engolir as besteiras que leio nos portais de notícia. Sempre tem mais uma. E, vamos concordar, pra engolir o pão que o diabo amassou – deve ter aprendido numa live qualquer –, também podemos caprichar nos acompanhamentos.

A noite chega. Minha namorada volta pra casa. Eu não disse ainda, mas talvez já esteja claro que moro com ela. Não estava planejado, já que a minha mudança de cidade e estado tinha como objetivo também encontrar meu próprio espaço. Porém, tinha uma quarentena no meio do caminho. No meio do caminho, tinha uma quarentena. Em sete meses de namoro acumulamos oitenta e quatro anos de casado – e é uma delícia. Conversamos sobre seu trabalho e eu a ajudo na forma que posso com as ferramentas que tenho em mãos – no caso, muito texto é um certo olhar pra fotografia. Conversamos sobre os projetos. Compartilhamos segredos. Compartilhamos sonhos. Multiplicamos a felicidade. Multiplicamos o amor. Cuidamos das plantinhas.

Na televisão, um grande debate sobre questões que talvez sequer precisassem ser debatidas. Na televisão, histórias de pessoas que se foram viram números sem qualquer possibilidade de contar sua história. Na televisão, absurdos que poderiam estar num filme de ficção de baixo orçamento – ou talvez até seja de alto orçamento, mas esse caixa foi desviado em algum momento. Na televisão, pelo amor de Deus, uma série da Netflix. Inúmeras novidades. Vamos rever Friends.

As risadas e carinhos trocados passam do sofá para a cama. Parece que o tempo não passou entre nós. Ainda somos os mesmos de quando começamos. Minto. Hoje somos melhores do que quando começamos. As pernas entrelaçadas. A coberta bagunçada. O gosto de pasta de dente. Os sorrisos satisfeitos. As mãos mergulhando pelos cabelos. A troca de olhares. Os olhos que se fecham devagar.

“Boa noite, amor”, dizemos quando estamos prestes a dormir. Ela cai no sono um pouco antes de mim. Invejo sua facilidade para encontrar com Morfeu. Eu me ajeito novamente na cama. Penso em qual sortudo eu sou por estar aqui. Por estar com ela. Por me sentir em família. Por estar vivo. Por poder contar minha história de dias repetidos. Por não saber se hoje é terça ou domingo. Por saber que esse momento ruim passará. Por saber que ainda há esperança. E enquanto houver esperança, há motivo pra continuar lutando, pra continuar cantando, pra continuar amando, pra continuar vivendo um dia de cada vez, mesmo que os dias fiquem cada vez mais parecidos entre si.

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Nickolas Ranullo
Revista Subjetiva

"Não digam a minha mãe que sou jornalista, prefiro que continue acreditando que toco piano num bordel".