DOGVILLE — Resenha de uma obra-prima contemporânea
(contém spoilers)
Uma miríade de emoções. É dessa forma que posso descrever a experiência sensorial ao assistir Dogville, peça cinematográfica do diretor que dispensa apresentações, Lars Von Trier. A proposta diferenciada é explícita e presente na composição de toda a obra, seja no cenário, diálogos, vestimenta ou trilha sonora.
Obedecendo a personalidade intrincada do diretor, Dogville possui traços do manifesto denominado Dogma 95 (aqui), proposto por Lars e Thomas Vinterberg 8 anos antes. Vê-se, portanto, que as técnicas utilizadas fogem do tradicional cinema hollywoodiano e apresentam uma obra ímpar.
Apresentando o filme em 10 partes — incluindo o prólogo –, Lars nomeia e resume os capítulos de forma a nos revelar, antes mesmo que os vejamos, o desfecho de cada um deles. No entanto, essa “precipitação” não arruína de forma alguma o desenrolar das ações e diálogos, todos perfeitamente colocados com o objetivo de justificar as conclusões.
Inicia-se finalmente a trama. De imediato, a voz do narrador acolhe-nos com um tom fraternal e parece nos transportar para dentro de outro mundo. Sem poder evitar, lembrei-me dos programas infantis que assistia nos primeiros anos de vida, em que contadores de histórias nos apresentavam possibilidades novas e inexploradas. Um verdadeiro convite ao telespectador.
Conforme desnuda-se a primeira cena, um susto comum: o cenário, praticamente inexistente, resume-se a marcações num palco teatral, delimitando as ruas e construções do vilarejo, enriquecidos, somente, por acessórios relevantes à trama: um sino, sofás, estantes e camas. Ademais, todo o resto se dá na imaginação de quem está do lado de cá da tela, forçando-nos a mergulhar no clima de Dogville para que possamos apreciá-lo verdadeiramente. Admito, a ausência de cenário traz uma sensação inicial de distanciamento, contudo, outros elementos tratam de fincar nossas raízes nas terras “dogvilleanas”. Como exemplo, posso utilizar as tomadas sem assistência mecânica para as câmeras e os closes que revelam, intimamente, as expressões faciais que ilustram cada uma das falas; sem contar as ações pantomímicas que, executadas de modo natural, reforçam a ideia de que ali, mesmo ausentes no cenário em sua forma física, encontram-se portas, animais e outros objetos. Desse modo, o distanciamento passa a dar lugar para a empatia. Uma crescente identificação catártica.
Provinciano, o vilarejo que alcunha a obra conta, numa primeira avaliação, com habitantes simples, mas que manifestam um rol de interpretações e visões da natureza humana. Desanuviados um a um, os elementos intrínsecos ao homem impactam diretamente nossa protagonista Grace (Nicole Kidman) e, por consequência, as vidas dos demais habitantes igualmente.
Grace, por sua vez, chega a Dogville destoando por completo dos demais residentes: traja roupas e utensílios caros; mantém os cabelos alinhados e a pele limpa. O contraste com as crianças que correm daqui acolá, completamente sujas e de roupas puídas, é evidente, visto que seus pais e vizinhos também conservam aparência miserável e/ou desleixada.
Grace. Um ente divino. De olhos claros e fios loiros, angelical. Trazendo simbolicamente em meio à entropia… A graça!
Tom (Paul Bettany), o co-protagonista, comove-se com a situação desesperada de Grace, a qual, ao chegar, parece fugir de algo extremamente vil, e se propõe a ajudá-la de todas as formas que dispuser. Ele, que se considera um filósofo em formação e futuro escritor, acredita que a vinda de uma estranha ao ninho possa reavivar sentimentos de compaixão, respeito e companheirismo nos habitantes do vilarejo que, segundo sua visão crítica, parecem excessivamente absortos nos afazeres e problemas diários para se deixarem evoluir como seres humanos. É posto em prática, portanto, um estudo social de campo, analisado quadro a quadro pelo aspirante a escritor.
A permanência de Grace, detalhadamente, é condicionada a duas semanas de labuta — mesmo que alguns cidadãos tenham relutado de início. Nesse meio tempo, ela precisaria provar seu valor auxiliando a todos, em quaisquer que fossem suas necessidades. A princípio nos parece justo, ajuda recíproca, quid pro quo, não é? Mas, se analisarmos a proposta de Lars em criticar o American Way of Life (Dogville pertence a uma trilogia de filmes com o intuito de expôr as incongruências políticas, econômicas, culturais e sociais dos EUA), então fica claro o juízo do diretor, reprovando a interpretação de que favores devem ser essencialmente pagos. Dogville faz o bem desde que receba o bem, nada de amor incondicional ao próximo ou doação voluntária, uma deturpação ocidental do que é de fato o altruísmo. Essa interpretação só se assevera quando percebemos que a ajuda de Grace é visivelmente irrelevante para muitos. Ou seja, o raciocínio predominante é: “Não devemos nada à moça, só ela a nós. Deixemos que pague com trabalho, mesmo que de nada precisemos com urgência. Tomemos seu tempo com mesquinharias, afinal, nada nesse mundo é de graça.”.
Grace então se desdobra para atender todas as tarefas a ela confiadas. Não habituada ao trabalho braçal, ainda assim realiza-o com gosto e simpatia, tentando aproximar-se dos seus salvadores num nível emotivo e não só de convivência tolerada. Quando menos percebemos, estamos sentados no sofá torcendo por ela, esperando que conquiste a confiança merecida e encontre um lugar realmente acolhedor. É, é isso que acontece: Grace encanta um a um.
Ao passo que auxilia em trabalhos domésticos diversos, também cuida dos menores, auxilia os estudos dos jovens, ensaia música com a organicista e faz companhia aos anciões do vilarejo. Ela, que antes era vista com desconfiança e até desagrado, passou a receber calorosos cumprimentos e elogios, satisfazendo Tom, que outrora se encontrava preocupado com a capacidade de Dogville de acolher, e que agora passava a admirar Grace e nutrir por ela algo mais íntimo. Por unanimidade, é permitido que a estranha resida ali, desde que continuasse desempenhando o trabalho até agora realizado.
Grace, infelizmente, achou que havia conquistado a passagem para o céu, somente depois percebeu que mergulhara nas entranhas do inferno.
Com a chegada do feriado da independência americana, reuniram-se à mesma mesa todos os residentes do vilarejo para uma celebração. Um deles, inclusive, faz referência à Grace num discurso improvisado que a elevava o espírito, uma prova de que era, em essência, bem quista por Dogville. Contudo, os latidos de Moisés — cão-guardião do lugarejo — haviam anunciado a chegada de homens da lei. Esses últimos, sem notar a presença de Grace — que rapidamente se escondera -, fixaram um cartaz de desaparecida com seu rosto estampado.
O ocorrido gerou inquietação entre os residentes, algo que só foi agravado com uma nova visita dos policiais e a troca do cartaz de “Desaparecida” para “Procurada”. De súbito, é como se Grace tivesse extrapolado sua dívida para com Dogville e precisasse pagar ainda mais pela proteção que estavam lhe concedendo, uma vez que galgara o status de fora-da-lei. É aí que as maçãs amadurecem e os abusos tomam partido na narrativa.
Ao passo que o pomar de maçãs (referência de Lars para o fruto proibido) encontrou-se pronto para a colheita, também estava Grace — aos olhos dos demais — pronta para ser consumida. Gradualmente, abusos verbais deram tom cinzento aos dias que antes eram recheados por simpatia recíproca, até que, dando voz aos seus desejos carnais, Chuck, um dos moradores de Dogville, pratica o impensável e estupra Grace numa cena chocante.
Chuck estupra Grace enquanto a polícia visita Dogville, impossibilitando que ela pudesse reagir, gritar. Nesse momento, a ausência de paredes na composição do cenário gera um misto de sensações, primeiro porque não estamos habituados a lidar com múltiplas cenas ocorrendo simultaneamente, e segundo porque o diretor traz a noção de que todos podem “ver” o ato, mas preferem “fechar os olhos”.
Com o primeiro estupro, Grace e Tom bolam um plano audacioso para que ela possa deixar a vila e o colocam em prática pegando emprestado do pai dele a quantia de 10 dólares. Com esse dinheiro compram um espaço para Grace em meio ao caminhão de Ben, usado para o transporte das maçãs àquela época do ano. Novamente o favor deve ser pago. Novamente a condição humana tende ao benefício próprio, pois Ben, tendo consciência da situação de Grace, também a estupra em sua caçamba e a entrega de volta à Dogville, onde é acusada de ingratidão e roubo, uma vez que Tom furtara — e não emprestara — de seu pai os 10 dólares para a fuga.
Covarde, Tom não admite sua participação na manobra e deixa com que Grace receba sozinha as penitências impostas pelo coletivo.
Grace passa a viver com uma coleira presa ao pescoço, tendo, na outra extremidade da corrente, uma pesada roda de carroça a atravancar seus movimentos. Irônico é o fato de que a “construção” do dispositivo se dá pelas mãos de Bill, jovem com capacidade intelectual inferior que sonha em ser engenheiro. Bill, no passado, foi ajudado por Grace a desenvolver melhor seus estudos e romper as barreiras que tornavam seu sonho de ser um profissional cada vez mais distante.
Cativa da vila que escolhera para fugir de outro cativeiro, Grace passou a ser vista como uma qualquer, uma escrava sexual, alguém que não poderia revidar em virtude de sua condição fugitiva. Logo, boa parte dos homens da vila acostumaram-se a fazer visitas regulares a seus aposentos, tomando-a para si.
Lars claramente expõe ao telespectador uma faceta desprezível da natureza humana: a injúria ao indefeso, o aproveitamento desmedido da subserviência da alguém. Em Dogville, “a oportunidade fez vários ladrões” e uma só vítima.
Como o travesso personagem de Mark Twain, Tom Sawyer, o Tom de Dogville escapara sucessivamente de ser visto como cúmplice das ações de Grace, convencendo-a, também, que fizera tudo visando um desfecho feliz. Sabia Tom que Grace era violentada dia após dia e, na sua reserva, suplicava para que aflorassem o desejo mútuo que mantinham e consumassem aquele amor às escondidas. Grace, porém, queria gozar do afeto de Tom fora do vilarejo, em liberdade, para que ele não se tornasse apenas mais um aproveitando-se de sua fragilidade. A recusa e as verdades expostas por Grace fizeram Tom perceber em seu imo que, na verdade, a amada lhe trazia dúvidas e ameaçava seu futuro nos moldes que vislumbrava. Contra todas as expectativas, denunciou secretamente a estadia de Grace e esperou a vinda de novos captores para retirarem-na de lá.
Para surpresa geral, Grace era procurada pelo pai, um gângster temível que reprovou veementemente o tratamento reservado a ela. Em vez de recompensado pela entrega da “prisioneira”, Tom acabou condenando o vilarejo todo à vontade — vejamos que ironia! — da própria Grace.
Grace, num diálogo profundo, alega ao pai que os habitantes haviam feito o melhor que podiam por ela e em seguida é questionada por ele se isso era o bastante. Após debater consigo mesma por um tempo, ela conclui: não, não havia sido suficiente.
O diálogo entre ela e o pai revela-nos muito da intenção do diretor no que condiz à análise da vontade humana. Sentença atrás de sentença, Grace se convence que o esforço genuíno dispendido por ela foi recompensado somente com a dor. Evidencia-se então o corrompimento da graça. Fazendo uso do poder paterno, Grace autoriza que os capangas queimem as casas e matem os habitantes de Dogville, poupando ninguém com exceção de Moisés, o cão.
No mais simplório “aqui se faz, aqui se paga”, a vingança de Grace se consuma sob o mote de que o mundo seria um lugar melhor sem aquelas pessoas. Esse paradoxo de que uma atitude considerada imoral, como o assassinato, pode ser justificada pelos alvos do crime, gera-nos uma profunda reflexão acerca das relações que constituem a sociedade. Condenar à morte não seria passível também de julgamento severo? Apenas uma das várias ponderações que somos forçados a abstrair.
Curiosamente, enquanto novelas caracterizam-se pela inclusão de personagens com nomes incomuns, numa tentativa de individualizar hábitos e personalidades, em Dogville, os nomes são ora simbólicos, ora universais; representam toda a humanidade e sua condição sofrível. Dogville é o mundo e Grace sua antítese. Afinal, da cena desoladora que é a morte de todos e a destruição da vila, resta apenas o cão, Moisés, guardião daquele inferno — o cérbero de Lars Von Trier.
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