A identidade permeável de Rodrigo Amarante em ‘Drama’ (2021)

O álbum, lançado em julho deste ano, consolida composições fabricadas ao longo do hiato de 8 anos sem gravações do compositor carioca

iogoch
Revista Subjetiva
5 min readNov 19, 2021

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O álbum ‘Drama’ (2021), de Rodrigo Amarante, alcançou neste mês, se somadas todas as 11 faixas do disco, mais de 3 milhões de streams no Spotify. O lançamento ocorreu em julho, após o compositor soltar previamente o videoclipe do single “Maré”.

Com estética diferente de seu antecessor, ‘Cavalo’ (2013), ‘Drama’ parece refletir um Amarante cada vez mais maduro, realista e disposto a confrontar-se depois de 8 anos sem novas gravações. As melodias melancólicas se mantiveram, mas agora acompanhadas de camadas rítmicas e experimentações timbrísticas antes pouco utilizadas pelo compositor. As letras exploram um eu lírico que contempla, mas que também se revela — ora pela esperança, ora pela sisudez de tempos sombrios.

Múltiplas vozes

Amarante disse em entrevista que o novo disco solo se diferencia do anterior porque ele não tentou buscar por uma identidade genuína ou coesa em sua expressão. Pelo contrário, para ele, trata-se de um trabalho que abraça múltiplas vozes, inclusive aquelas silenciadas, como a birra, o exagero e, é claro, o drama.

Essa intenção do compositor de explorar uma variedade de expressões realmente reflete o álbum. Logo no início, há a mudança da desnorteante faixa de abertura que dá nome ao disco, “Drama”, para a calorosa “Maré”, canções que apontam caminhos opostos. Daí para a metade do disco, cada música carrega alguma inovação, seja na estrutura, na letra ou nos timbres utilizados. Mas do meio para o final, as escolhas timbrísticas não causam mais espanto e as melodias soam semelhantes. Um sinal de que a coesão estética de Amarante não foi completamente rompida, o que não necessariamente é algo ruim.

Singles

“Drama”, faixa de abertura, como o próprio nome diz, explora o exagero e a linguagem teatral. É inteiramente instrumental, produzida com uma estranha mistura de arranjo de cordas, ambientação de banho e risadas de uma plateia desconhecida. Foi lançada como trailer do álbum depois de “Maré”, single de maior sucesso do disco (atualmente com quase 1 milhão de streams no Spotify), que traz uma riqueza rítmica essencial para entender a força do trabalho de Amarante.

“Tango”, outro single, é uma balada de amor, mas que talvez possa ser melhor interpretada com o que Amarante chama de “amor político”. A música mergulha nas tempestades que são a confiança e a entrega, quase como um pedido de ajuda do eu lírico. O verso “e nós nos tornamos um” revela um elemento que irá se repetir frequentemente na obra do compositor carioca: a ideia de que o individualismo é ilusório. Ou, como já disse o próprio Amarante em entrevista, “nós somos muito mais colmeias de abelhas do que lobos solitários”.

Em “I Can’t Wait” (6ª faixa do disco e 3º single) esse elemento ganha ainda mais força. Aqui, Amarante provoca a compreensão capitalista de que a evolução se dá pela competição e pela propriedade ao cantar novamente que as pessoas são, na verdade, todas um só organismo:

“Nossos corações batem como um só
Aquele velho sonho nosso
Ser livre é pertencer”

Política

Amarante já disse que o disco surgiu de uma necessidade de romper com sua tendência de conter emoções. O que é interessante é que a repressão do sentimento é socialmente aceita, e muitas vezes violentamente incentivada, em homens e meninos. E o disco parece se opor a esse papel masculino dentro da sociedade ocidental que provê, mas é incapaz de gerar afeto. E isso é tratado no disco como um confronto de Amarante consigo mesmo. As faixas revelam um masculino pouco sério, racional e eficiente. Revelam um Amarante vulnerável, que reconhece que a repressão da sensibilidade mais adoece do que enobrece.

Além disso, há no álbum uma crítica ao paradigma neoliberal (e neofacista) que vivemos hoje, ainda que o tema se manifeste de maneiras diferentes em cada faixa. Talvez a música que trata da questão mais explicitamente é “Um milhão”. Nela, o compositor ironiza a desigualdade social com um discurso frontal, sem deixar que gravidade da questão se perca:

“Para cada um com um milhão
Um milhão sem nenhum
E o que eles veem, só não vê
Quem não quer ver”

Nostalgia e espiritualidade

Além do teor político, “Drama” também tem fortes efeitos nostálgicos no ouvinte. Isso ocorre tanto no sentido musical, como em “Tara” (música de arranjo referencial aos anos 40 e 60 da música brasileira) como também na temática da infância, que surge em muitas letras do disco. É possível até observar o álbum como um grande livro de memórias que são ressignificadas pelo compositor.

Outra música de destaque é “Tao”, tanto pela melodia doce e harmonia progressiva (que segue um ‘crescendo’ comovente), como pela letra, que explora a compreensão oriental da espiritualidade e da metafísica. Nela, Amarante discorre sobre uma força que está presente em todas as coisas. No início, seu nome é Tao, mas logo ele encontra um nome mais apropriado:

“No arco do olho entre os cílios do sol, pavão
Na curva do rio que é turvo do céu pagão
Na linha dos ombros, a sombra, as dobras da mão, os vãos
Se foi tudo amor, é amor o nome então”

‘Drama’ é um disco que explora às tangentes do sentimento de um Amarante que queremos conhecer cada vez mais. E por mais que a obra possa soar muitas vezes estranha para o ouvinte desavisado, é uma estranheza sedutora, compensada pelos pequenos tesouros de uma revelação em forma de música.

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