Eles não falam a nossa língua

Naná DeLuca
Revista Subjetiva
Published in
5 min readSep 13, 2017

Com frequência minorias falam mais abertamente entre as linhas, ironicamente reconstruindo diálogos que o opressor acredita controlar ou mesmo encontrando novos tópicos e modos de falar para os quais o próprio opressor carece de acesso (David Van Leer)

Eles não falam nossa língua.

Não falam nossa língua no almoço de domingo ou na sala de aula. Não falam nossa língua nem na televisão nem no livro didático. Não falam nossa língua. E não nos explicam nada. A criança viada sabe que decepcionou o pai ao usar maquiagem, mas não sabe por quê. Sabe que não é igual às outras crianças - não a tratam como as outras crianças - mas não há quem se dê ao trabalho de explicar o arco-íris das razões. Não a enxergam e quando enxergam — rejeitam, humilham, violentam, interditam. Viadinho! eu ouvi ontem na rua. Maria sapatão! me gritavam na infância.

A criança viada cresce inevitavelmente alheia ao universo LGBT, a não ser que tenha sorte de bunda virada para a lua. A criança viada é a criança fabulosa invisível, isolada em bolha que não é a sua, onde seus trejeitos são chacota, suas coreografias são escárnio, sua voz é a punch line, sua sensibilidade é fraqueza, seus interesses são esquisitos e COITADOS DESSES PAIS. Quantas vezes não ouvimos essas variações que atestam nossa invisibilidade. O filho de fulano é viadinho, sabe? Coitado do pai. A criança é perseguida, julgada, humilhada, taxada como vergonha da família. Quem sofre? Os pais. Dolorosa ilógica.

E, então, a hora e a vez da saída do armário. E nos dizem: “Vai sofrer tanto. Gay sofre.” (eles usam gay pra tudo, é praticamente a única palavra formal que, na língua deles, não possui o valor imediato de ofensa). Sofremos, sim, mas não, simplesmente, por sermos nós. Sofremos porque vocês não aceitam que não somos vocês. Vocês, que nos vexam, espancam, matam, xingam, perseguem, segregam. Vocês, que nos expulsam de casa e das escolas, que tornam insuportável o ambiente de trabalho. Vocês, que ontem mesmo foram correndo para a caixa de comentários do UOL afirmar que uma pessoa trans não-binária é doente, aberração (um salve para Juno que, se chegar neste texto: saiba que estou aqui e ao teu lado me prostro). Vocês, que do dia para a noite viraram críticos de arte e simplesmente têm que expor toda a repulsa pelas apologias, palavra cujo significado evidentemente desconhecem, pois se conhecessem não a inseririam em um debate sobre arte (caralho!). Ser LGBT é, todos os dias, a vida toda, passear pelo inferno. Se há um motivo para não temer a possibilidade do inferno cristão, é a obrigação pressuposta de nele já estar.

E, então, crescemos e tomamos para nós as palavras que nos foram apontadas como armas a vida toda. Viado. Viada. Sapatão. Celebramos. Oi, sapatão! minha amiga diz quando entra em casa. Sorrio, porque como é bom ouvir em tom feliz, em tom leve, em tom meu, essa palavra que durante tanto tempo foi usada para me ferir. Hoje me cumprimenta alegre. Um viado bem colocado, desses em caixa alta e de sílabas separadas: VI.A.DO. Que delícia.

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Eles não falam a nossa língua. E o que é pior, sequer sabem que a possuímos. Eles não sabem que criança viada é uma expressão feliz, pois faz parte de um reconhecimento. Reconhecimento de nossa infância, aquelas do passado e aquelas em andamento. Reconhecimento de que esta infância existiu e, entre trancos e barrancos, foi conquistada. Não sabem que usamos essa expressão comumente, não raro para celebrar os filhos que rejeitam. Eles não sabem que nós aprendemos a gostar de sentir em nossas bocas as palavras que eles usam para nos matar. E sequer cogitam a possibilidade. Mas nós cantamos: um beijo, um beijo, um beijo pras travestis! Antropofágicos por obrigação, comemos os inimigos para deles extrair valor: celebramos a criança viada, por eles torturada a vida toda.

Precisamos inventar um projeto internacional chamado It Gets Better (literalmente: Vai Melhorar) cujo slogan é “Dê esperança para a juventude LGBT” e a sociedade cishétero ainda não percebeu que esta juventude existe e precisa desesperadamente ser reconhecida, acolhida, pois cresce no pavor. No pavor do refrão vai sofrer, gay sofre que fatalmente será entoado quando finalmente verbalizar; no pavor da rejeição concreta (a abstrata nós já sentimos, não se preocupem), no pavor da mão da mãe que talvez despenque violenta em sua direção, no pavor de perder o teto, no pavor do colega da escola homofóbico violento (viadinho prá cá, viadinho pra lá) que todo mundo adora. No pavor de não se ver leve nas leituras obrigatórias, nas novelas da TV, nas séries da televisão, nos filmes blockbuster.

Não há novidade alguma em arte que fala sobre tabus. Não há novidade na arte que traz o sexo. Não há novidade na representação da violência, quem vê Globo ou Game of Thrones está familiarizado. A novidade sequer está no artista queer, que há um bom tempo já faz girar a roda (não é engraçado quando eles celebram os filmes da Pixar? Justamente estes filmes feitos por e para crianças viadas, que banem a lógica heteronormativa e, quando a ela recorrem, o fazem via ciborgues).

Eles não falam a nossa língua. Estrebucharam-se e encontraram somente as palavras que usam há séculos, pois sequer tem a lábia da reinvenção: pedofilia, pornografia infantil, imoral, crime, falta de Deus, etc etc bocejo. Censuram, claro. Quem em sã consciência endorsa tais termos? Estamos diante da falácia Complexo do Pombo Enxadrista, o recurso retórico preferido do discurso demente e patético do MBL e afins: pressupor a vitória, dando a entender que se venceu a discussão. A falácia foi batizada a partir do que diz Eugenie Scott: “Debater com criacionistas sobre o tópico evolução é comparado a tentar jogar xadrez com um pombo — ele derruba as peças, defeca no tabuleiro e volta voando pro seu bando para cantar vitória”.

E vemos os pombos entoando sua vitória cagada. Venceram, como sempre julgam vencer, a criança viada. São pombos gralhando, nada mais. Julgam ter vencido um debate cujos termos desconhecem. Acreditam controlar nosso discurso, conhecê-lo. Sequer nos cogitam como criadores legítimos de nossa própria existência. Sequer cogitam que, talvez, olhemos o mundo por olhos nossos. E que, talvez, não tenhamos vergonha de termos sido as crianças que fomos. E que, talvez, tenhamos algo a expressar (artisticamente, por que não?) sobre isso. Falemos. Não podemos mais ceder aos berros medievais que se fingem contemporâneos, liberais, modernos. Para eles, um dia acalorado nas redes sociais. Para nós, mais uma humilhação, mais uma rejeição, mais um tabu, mais um dia tendo que explicar aquilo que nos é óbvio. Chega de gralhas, que queimem os pombos. E viva a criança viada.

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Naná DeLuca
Revista Subjetiva

Pensa que todo mundo é poeta quando cai o dia e as lâmpadas acendem. O resto é combinação. Um dia ouviu que “escrever é difícil, mas faz gozar”. E acreditou.