Elza Soares: a mulher símbolo do século XX

Thaís Campolina
Revista Subjetiva
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4 min readMay 20, 2019
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Poucas biografias são capazes de abordar a história de toda uma época ao contar a vida do biografado, o livro sobre a vida de Elza Soares é uma dessas poucas exceções. Zeca Camargo, ao compartilhar as histórias da cantora com o leitor, indiretamente fala sobre nascer, viver e envelhecer como mulher e negra no Brasil do século XX.

Elza lidou com a pobreza, com a discriminação e com a violência destinada ao seu corpo por ele ser o de uma mulher. Sua carreira, marcada pelo enorme talento e pela vontade de cantar, foi construída apesar dos obstáculos criados pelo racismo, machismo e miséria. Sua história, mesmo sendo a de uma estrela, expõe a batalha pela sobrevivência de muitos brasileiros da época.

Apesar de sua voz única, ela nunca conseguiu simplesmente seguir o curso de sua fama como vários artistas brancos. A cantora precisou lutar para se manter em evidência, o que fez sua trajetória ser caracterizada pela presença de altos e baixos. Alguns bem baixos mesmo, como a própria reconhece e evita comentar com detalhes.

A música para a Mulher do Fim do Mundo foi inicialmente uma paixão proibida e também um meio de colocar comida na mesa e garantir a sobrevivência dos filhos. Viver de música sendo uma mulher era lidar com um estigma daqueles. No imaginário social, as artistas, por terem uma vida pública, não eram vistas como bons exemplos de mulheres direitas e a figura delas era ligada muitas vezes à prostituição. Seu pai, sua mãe e nem o seu marido aprovavam que Elza seguisse esse caminho. Ainda assim, ela seguiu. Mesmo que de forma pouco linear.

A primeira aparição de Elza no mundo da música é relacionada a esse dilema. Ela se inscreveu para participar do show de calouros do programa de rádio do Ary Barroso sonhando principalmente não com o início de uma carreira musical, mas com o prêmio em dinheiro que aliviaria por uns dias a busca pelo sustento de sua família. A atração pela música a guiava, como uma espécie de desejo secreto, mas sua prioridade era, acima de tudo, sobreviver.

Quando Ary Barroso, num tom de provocação, perguntou o que Elza tinha ido fazer ali e de onde ela tinha vindo, ela respondeu: “Do planeta fome”. As risadas que surgiram na sua entrada no palco foram substituídas pelo silêncio. Ela cantou, ganhou o prêmio da noite e ouviu de Ary que de sua apresentação nascia uma estrela. A frase que iniciou a carreira da cantora impacta ainda hoje — e também incomoda — por expor uma ferida da sociedade brasileira.

A violência masculina marcou presença na vida de Elza. Ela se casou aos treze anos com um um jovem que tentou estuprá-la. Seu casamento foi arranjado por seu pai que, em defesa da honra da filha, obrigou o agressor a se unir a ela. Sua vida a dois com esse homem foi extremamente infeliz e violenta. Além disso, anos mais tarde, a cantora também viveu um relacionamento abusivo com Garrincha. O biógrafo nos apresenta essas memórias com cuidado e expõe como essas práticas eram ainda mais naturalizadas na época, inclusive sobre os olhos da própria vítima e seus familiares, pondo o leitor em contato com a maneira que essas dores ainda afetam a dona dessa história. A sutileza dessa abordagem é interessante para mostrar como a biografada vê o que passou, mas peca ao não trabalhar diretamente a questão social envolvida nessa fase da vida dela.

Se debruçar sobre as memórias de Elza, narradas e comentadas por Zeca Camargo, é encarar o mundo real e entrar em contato com sofrimentos, desigualdades, miséria, intensidade, transformações, conquistas e amor pela música. Ela buscou sempre viver a partir do que ela acreditava ser certo para ela e se tornou um símbolo de uma época por isso.

Elza surgiu quando muitas gravadoras se recusavam a trabalhar com artistas negros e as poucas que faziam isso acabavam investindo menos neles e pode viver para questionar isso e outras tantas coisas. Ela viveu as mudanças sociais do século XX em seu corpo e hoje canta músicas que mostram o quanto o mundo se modificou desde que ela nasceu. Ela transformou e foi transformada, como boa filha do período que representa. Hoje, já em outro século, mostra que na velhice ainda há tempo de se reinventar, curtir e cantar e é essa postura de abraçar as oscilações do tempo que a tornam um ícone agora.

Elza é um nome que nos faz pensar no que o Brasil foi, é e pode ser caso a gente consiga enfrentar os obstáculos que se colocam entre o presente e um futuro menos desigual.

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Thaís Campolina
Revista Subjetiva

leitora, escritora e curiosa. autora de “eu investigo qualquer coisa sem registro” e “Maria Eduarda não precisa de uma tábua ouija” https://thaisescreve.com