EM 2020 A PRINCIPAL ESTRUTURA DO RACISMO PRECISA SER ENFRENTADA

Mais de 130 anos após abolição, escravidão ainda mostra sua face através dos presídios brasileiros

Ana Beatriz Rocha
Revista Subjetiva
7 min readJan 27, 2020

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(Foto: Mario Tama/Getty Images)

Morar em um bairro considerado periférico é lidar, volta e meia, com cenas de truculência policial. É sempre a mesma sensação, a gente conhece o sistema e sabe que isso é rotineiro. Mas ali, frente à frente com a representação de um Estado genocida, nós paralisamos. O sangue ferve e sequer conseguimos expressar em palavras a revolta.

E há quem diga que só teme quem deve, mas a verdade é que a nossa sociedade é estruturada numa lógica distorcida de punitivismo e justiça social. É aí que entra a ligação entre o fenômeno do encarceramento em massa e o racismo, que antes eu chamava de atravessamento, mas agora entendo que é alicerce do cárcere.

No cotidiano costumamos enxergar cruamente o sistema penal. O teor punitivista do modo como a segurança pública é orquestrada, onde os corpos encarcerados não são vistos de forma humanizada por parte da sociedade, naturaliza os alarmantes dados do Brasil. O país é detentor da terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e China. Os índices são do último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) divulgado em 2017, pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, que atestou que mais da metade dos presos são jovens de 18 a 29 anos, e 64% são negros.

As reflexões abaixo têm muito dos ensinamentos de Ana Luiza Pinheiro Flauzina, doutora em Direito. Minha xará retratou em sua obra Corpo Negro Caído no Chão análises, embasadas na criminologia, sobre o racismo presente na gênese do sistema penal, e como isso se tornou um projeto de genocídio do Estado brasileiro.

A autora traz à tona a noção de status de criminoso, que nada mais é que uma etiqueta posta pelo empreendimento penal em determinados grupos sociais, onde através deste status será escolhido quem iremos criminalizar ou não. A equação é fácil de ser entendida, de uma lado tem a banalização em relação ao quanto o contexto social pode influenciar nas ações dos indivíduos, soma-se isso ao fato de que é impossível criminalizar todo ato transgressor cometido na sociedade, pois pense bem, a maioria das pessoas estaria devendo algo para o judiciário (inclusive eu e você). O resultado é nítido, a criminalização seletiva do criminoso.

Marcas da escravidão

Vamos voltar umas casas no chão histórico para entender melhor como isso acontece. Podemos dizer que, no período escravocrata, o aparelho punitivo era privado. Sabemos que tinham os capitães do mato, também conhecidos como feitores, que puniam os escravos por: trabalhos que desagradassem o senhor, tentativas de fuga, resistências, ou apenas para divertimento da família. Com os primeiros respingos de alforria, o governo criou leis de vadiagem — que visava punir cidadãos que fossem “desocupados”- apenas um pretexto para manter negros e pobres no alvo do controle social, e presos.

Ou seja, dizer que o racismo é a base e engrenagem do sistema punitivo no Brasil não é vitimismo, é fato histórico, devido às heranças do colonialismo. Ao longo dos séculos, as estratégias para desarticular o segmento negro enquanto grupo foram se multiplicando, e assim, dificultou um real enfrentamento do genocídio. A miscigenação, durante e após a escravidão, não foi só para embranquecer a população negra, foi para separar também. Seja pondo negros de pele clara contra os de pele escura, impedindo qualquer constituição familiar entre pessoas negras, bem como a criminalização de práticas culturais e religiosas dos nossos ancestrais, com o intuito de negligenciar nossa identidade. Evitar qualquer organização do nosso povo era uma garantia de que eles se manteriam fortes no poder.

Tendo em mente esse passado sórdido, não é difícil notar que o punitivismo já nasceu com o preto no alvo. Com o passar do tempo isso só se aprimorou. Basta uma voltinha na periferia para notarmos a presença constante da PM em rondas e mais rondas. Faz um teste, passa lá no bairro nobre e conta quantas viaturas você viu. Segundo Ana Luiza, isso mostra a dualidade vigilância x imunidade. O Estado racista e genocida recruta os negros para punição, é a lógica popular do “quem procura acha”, e de tanto procurar só nos bairros pobres, a quantidade de pretos aprisionados será sempre maior. Não é sobre quem mais comete crimes, é sobre escolher qual povo trancafiar e jogar a chave fora.

E assim a gente segue, enterrando os nossos dia após dia, por vezes sem sequer entender o (pseudo) motivo. Ao longo do tempo, aprendemos que o início da pedagogia dos maus-tratos foi a Ditadura Militar. Nos indignamos com tamanha tortura e maldade vinda do aparato policial, e com razão. O que a gente não discute é se não se trata de uma indignação seletiva, tendo em vista que o segmento negro vem, há tempos, sendo torturado. O regime militar choca por ter massacrado o corpo branco, foi quando a violência compulsória dos líderes políticos extrapolou a raça e atingiu corpos independentemente de sua cor ou classe, por questões ideológicas. É evidente que foi aterrador, mas a violência policial é baseada no modo de tratamento destinado à corporalidade negra, proveniente da desumanização e animalização, e por isso é tão brutal, ainda que contra não-negros.

Falsa democracia racial e a seletividade das grades

Somos o país da pluralidade, terra do samba, carnaval e multicores de pele. Sinto em dizer, apenas falácias. Pelas cidades as madames seguram mais forte a bolsa ao ver um jovem preto. Proteger o bem material do corpo de risco. No Brasil, os crimes contra o capital são os mais punidos, impondo um recorte nítido de classe ao empreendimento penal. Aliado a isso, vem a proteção aos infratores brancos de classe média, pois são vistos pelo regime como consumidores em potencial. Prendê-los impactaria negativamente o motor econômico, lucro. Além disso, para o projeto de selecionar os corpos do cárcere, vem à tona o plano estético de criar a suspeição constante em volta do corpo preto. O medo destinado a uma imagética específica foi a construção perfeita para manutenção do controle social sobre o nosso segmento.

Os tão questionados Direitos Humanos, que por serem abrangentes e garantidores de condições dignas a todos os corpos são, frequentemente, acusados de “defender bandidos”. A não humanidade conferida às pessoas encarceradas permite que prisões brasileiras sejam masmorras abarrotadas de dejetos sociais. As análises das penitenciárias brasileiras demonstram um cenário aterrador, onde além da superlotação, problemáticas como dificuldade ou nenhum acesso a saúde e lesão corporal constante por parte dos servidores são presentes. Com o recorte racial bem explicitado, pouco se diferem as modernas prisões das antigas senzalas do território brasileiro.

É fato, não é fácil entender como em pleno século XXI a flecha do encarceramento ainda esteja tão direcionada a um grupo só. Por isso, o conceito de Biopoder, do filósofo Michel Foucault, cai como uma luva para compreender a dinâmica. O Estado, como representação soberana, tem poder sobre as nossas vidas pois pode extingui-las, numa simplificação, pode fazer morrer e deixar viver. Levando isso ao contexto escravocrata, a ameaça da morte era a garantia material e simbólica da subserviência. Não é novidade que o Brasil foi o país que mais recebeu africanos traficados para servirem como escravos, e que foi o último a abolir o regime, isso deixa evidente que vivemos sob um sistema onde a normalidade social é pautada na negritude curvada a branquitude, e o negro é submetido a um controle social que opera por meio do cárcere.

Caminhos de luta e os discursos obstáculos

Reconhecer o sistema punitivo brasileiro como um projeto genocida é necessário, para assim, sabermos onde estão os sustentáculos do racismo institucional, pois criaram diversas barreiras para a inserção do nosso grupo em espaços de articulação, poder e liderança. O povo preto é periferizado na espacialidade urbana, a pobreza foi construída como possibilidade única pois não nos permitem acessar os meios necessários para ascender socialmente. A população negra é maioria em baixa escolaridade por evasão escolar (por dificuldade de acesso e más condições de permanência), sem qualificação, ela está entregue a subempregos para sobreviver. Nos matam todos os dias, as estatísticas assassinas visam impedir a continuidade da nossa gente. É importante frisar que não basta criarem leis anti racistas, pois todos os governos têm tido o genocídio da juventude negra como agenda base, ainda que não diretamente, devido aos termos do pacto não terem sido alterados.

Nos últimos tempos, a incessante luta tem trazido conquistas e ocupação de espaços a população negra, mas a resistência coletiva pode ir mais além. Esse ano, é importante que haja o debate sobre as ações afirmativas, embora muito necessárias, não serem suficientes para barrar o racismo institucional. É preciso que se perceba que pessoas negras ocupando espaços acadêmicos e profissionais são avanços que dizem respeito às consequências da estrutura. O super encarceramento dos corpos negros é a própria estrutura, é o modo como o capitalismo mantém o segmento negro em condição de desumanidade e no alvo de um permanente controle social. Que em 2020 os avanços sejam comemorados, mas que a luta se volte para aniquilar as estruturas do racismo, caso contrário, mais cortinas de fumaça serão lançadas pelo sistema genocida de poder.

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Ana Beatriz Rocha
Revista Subjetiva

Jornalista, escritora independente e em eterno flerte com a poesia. Cada fragmento estanca a ânsia por liberdade que há em meu peito.