Emicida e AmarElo: “Eu decido se cês vão lidar com King ou se vão lidar com Kong”

Matheus Morais Inácio
Revista Subjetiva
Published in
4 min readNov 1, 2019

O álbum do Emicida saiu. Isso, em 2019, é relacionado a um fenômeno importantíssimo e é. Tem que ser. Tem porquê ser.

Eu digo sem ousadia nenhuma que, o que Mano Brown junto aos Racionais MCs foi em 90/2000, Emicida é 2010/2020, no sentido de implicância grandiloquente dentro do social, da mídia, da comunicação, do empoderamento, da criação de caminhos pra que outros rappers e outras rappers nasçam e explodam, para pretos, pretas e pretes em seu todo, até mesmo da estética. A própria criação de do Laboratório Fantasma e todos os seus feitos impactantes pra cultura periférica e preta é algo que abala o status quo do Brasil, principalmente nesses tempos presentes, isso não é pouca coisa. Isso, na verdade, é tudo. É um tato que contém tanto o soco quanto o carinho num movimento completo de afirmação de existência preta e demasiadamente humana tanto de si quanto do outro, e não digo só em relação ao novo álbum, mas a própria trajetória, do primeiro visceral intenso mas que azeda um canto da alma, “Pra quem já mordeu cachorro até que eu cheguei longe”, ao último, também visceral intenso mas que adocica algum canto da alma, “AmarElo”.

Ontem estávamos discutindo o que é o álbum, qual a carga que ele trás, da expectativa até a tentativa de compreender o que Emicida quis passar e como está ele como sujeito. Das representações, num geral, como numa ilustração. Eu estranhei a primeira ouvida, cheguei a desgostar, digo sem pestanejar. Minha expectativa era um rap agudo, bruto e isso fala muito mais de mim, obviamente, e Emicida me dá um álbum que tem, óbvio, o espirito do rap, mas que mescla com outros tipos de sabores e que chega a ser sublime. Sublime na tentativa de ser um álbum singelo que, ainda sim, tem suas agulhas. Vide a música “9inha” cantada com Drik Barbosa que na sua melodia, tom e atmosfera, expressa algo amoroso e fofo, mas, fala sobre a relação de alguém com uma arma de fogo.

Bota fé no que eu tô falando?

Se fala muito de Emicida e com absoluta certeza, vai se continuar falando pelos tempos, não como um eco, mas como uma voz presente e materializada por música e muito mais.

Na faixa “Eminência parda”, com Jé Santiago, um dos expoentes do trap brasileiro e Papillon, rapper preto português que, num viés decolonial, é simbolicamente cirúrgico quando o primeiro verso do rapper português adentra logo após Emicida cantar “(…) Como abelha se acumula sob a telha // Eu pastoreio a negra ovelha que vagou dispersa // Polinização pauta a conversa // Até que nos chamem de colonização reversa” se mostra uma das faixas mais brutas e agressivas do álbum — se não a mais — em que Emicida demonstra o lado Emicida, de fato, o “Emicida da rinha”, que já se conhece há tempos.

Nessa mesma faixa dentre as várias orações liricamente incríveis, outra que me chamou a atenção é a seguinte frase: “Eu decido se cês vão lidar com King ou se vão lidar com Kong” e sinto que o álbum fala sobre isso, sobre ser rei ou opositor, criador e destruidor, paz ou guerra — apesar do termo rei se incômodo, no sentido imperialista, dum monarquismo, é extremamente compreensível o sentido metafórico — poderoso, influente, sábio, num ideal da imagem de um rei.

Esse álbum fala sobre Leandro, sem deixar o Emicida de lado. Não é sobre um dualismo divisório, é sobre união, afinal “tudo, tudo, tudo, tudo é nóiz”, como é dito na faixa “Principia”, com os vocais de Fabiana Cozza, Pastor Henrique Vieira e Pastoras do Rosário. É sobre uma calma, sobre uma atualização, sobre uma sapiência. Até mesmo sobre envelhecer mas não num sentido mórbido, mas sim, de vivência e potência. A calma dos elementos grandes de MPB, samba, falam sobre esse tempo, esse tempo histórico. Afinal, o samba, a MPB, vem desses outros tempos, sem o sentido antiquado, mas sim com o sentido simbólico, cultural, ancestral. O movimento é de atualização de seu próprio ser, se mostrando acompanhado, onde essa noção de sapiência vem com inúmeros outros sábios em todos os sentidos, como Fernanda Montenegro, Zeca Pagodinho, Dona Onette, Belchior, da mesma forma que trás consigo Pablo Vittar, Majur, Jé Santiago, Drik Barbosa, MC Tha. Abro destaque pra faixa “AmarElo” homônima do título do álbum que corrobora com a confluência entre contemporâneo e ancestral onde um homem preto do rap trás uma mulher trans preta, Majur, e a maior ícone LGBTQI+ brasileiro contemporâneo, com mais visibilidade no mundo, Pablo Vittar, pra não falar das dores. Pra não falar das dores. É de um singelo grandioso. É grandioso, é importante.

De novo, não é sobre divisão, é brilhante como se a pele preta oralizasse sobre união. Emicida, nesse álbum, fala da compreensão de não ser uma dualidade e sim confluência do ser, do alívio do respiro, da paz que dá, mas sem perder as garras.

É interessante compreender onde o rap está, onde o hip hop brasileiro está, em como os movimentos, de fato, ajudam a existir, inclusive um gênero musical, inclusive uma cultura, inclusive um movimento revolucionário. É sobre maturidade e doçura de um indivíduo que, como alguém que viajou atrás de si mesmo, volta e conta sobre voltar-se para si. Sobre história a história de Emicida, de Leandro e do que na verdade, é um todo.

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