Empreendedorismo é coisa de louco

Desconstruindo a ilusão e falando de saúde mental.

Yasmin Narcizo
Revista Subjetiva
8 min readSep 12, 2019

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Eu sou uma pessoa que não sossega, então recentemente inventei de ouvir podcasts enquanto eu trabalho (porque, né, fazer uma coisa só de cada vez é sooo last season — alerta de ironia, gente, pelamor). Sei lá por que cargas d’água, comecei a consumir um conteúdo justamente sobre empreendedorismo.

E aí deu ruim.

[Ressalva: tem podcasts de empreendedorismo, especialmente focados em mulheres, muito bons. Mas não foi o caso]

Tá, vamos lá explicar a história.

Basicamente, no podcast, duas empresárias entrevistavam uma terceira. E, em um dado momento do episódio, a terceira resolveu dar “dicas” pra provar que abrir uma empresa é bem fácil (!).

Coisas que foram ditas:

  1. É possível abrir uma empresa sem investimento de capital nenhum
  2. Criar uma empresa é “só” uma questão de ser observadora e encontrar uma necessidade na sociedade
  3. Primeiro você TELEFONA para a empresa de um cliente que você gostaria de ter. Depois que convencer o sujeito a te contratar, SÓ AÍ você cria a empresa (!!!), se regulariza, contrata a equipe e pensa como vai fazer pra dar conta do negócio, literalmente.

Ok, existem 390 milhões de contextos diferentes na vida? Sim. Pode ter funcionado exatamente assim pra pessoa em questão? Sim. E que bom!

Mas, particularmente, achei uma baita duma irresponsabilidade reforçar essa fábula do empreendedorismo salvador, que A) é a solução para todos os seus problemas, B) vai te fazer ficar rico, C) você vai trabalhar muito menos D) nunca mais vai ter chefe e E) vai tirar férias quando quiser.

O que a gente acha que o empreendedorismo é

A gente acha que criar uma empresa é coisa rapidinha, clica ali no site e pronto, teu CNPJ de MEI sai na hora.

A gente acha que trabalhar pra si é muito melhor do que ter chefe, que criar as próprias regras com relação a trabalho e aos processos da empresa é muito melhor do que seguir um conjunto de instruções já pré-estabelecidas.

A gente acha que, como o negócio é nosso, a gente vai dar 200%, produzir muito mais e muito melhor, até conseguir ficar rico. Sabe, bem aquela ideia do primeiro milhão antes dos 30? (HAHA, nem que eu quisesse)

Desconstruindo o mito

Deixa eu contar uma coisinha pra vocês sobre mim: eu nunca quis ter meu próprio negócio, eu nunca quis ser milionária (tipo, não era algo que eu ía perseguir como meta), eu nunca quis ser dona de empresa, eu nunca quis ser chefe. Aliás, eu nunca quis ser dona de porra nenhuma, só do meu próprio nariz — e, olha, que dificuldade que foi quando isso aconteceu!

Vivi 98% da minha vida até agora sendo uma feliz funcionária de carteira assinada. Eu sabia que em alguns momentos estava sendo explorada, em muitos momentos sentia que estava ganhando bem abaixo do que eu entregava, é verdade. Porém, nunca gostei de lidar com burocracia, eu gosto mesmo é de botar a mão na massa e fazer o meu trabalho, o que eu gosto.

Acontece que a vida é uma montanha-russa e, por vários motivos que eu não vou elaborar aqui, acabei tendo que me tornar uma empresária. E foi justamente nessa hora que eu vi o quanto esse discurso do empreendedorismo salvação estava completamente errado.

É CLARO que cada experiência é uma experiência, mas vou trazer algumas vivências aqui pra roda, pra tentar mostrar um outro lado um pouco.

Photo by Bonnie Kittle on Unsplash
  • Criar uma empresa NÃO é rapidinho

Até pra abrir um MEI deu um trabalho ferrado (isso no RJ, não sei como seria em outros estados). Precisei da ajuda de dois amigos que tinham feito isso recentemente, uma ida à Prefeitura, alguns dias de espera e me virar nos 30 em um sistema de emissão de notas que eu nunca tinha visto na vida pra conseguir fazer a coisa toda funcionar.

Somado à isso, tem os impostos mensais (sim, gente, mais boleto) e o imposto de renda, que ninguém te avisa como faz e quando. Esse trampo todo só porque na época era uma microempresa, imagina se tivesse aberto uma real-ofícial, daquelas com funcionárioS (no plural) e tudo.

E isso porque estamos falando somente de papéis. Imagina o esforço de criação de nome, logo, site, em alguns casos contratação de sistema de faturamento, sistema de vendas, funcionários, criação de estoque, etc.

É MUITA BUROCRACIA, minha gente.

Em outro podcast que eu estava ouvindo (não tô brincando, tô obsessiva com essa coisa), a Jana Rosa (Bonita de Pele) e a Marcela Ceribelli (agência Obvious) falaram sobre como você abre um negócio pra trabalhar com o que ama e, de quebra, ganha umas planilhas, uns boletos e um monte de coisa que você nem entende pra dar conta.

E é E-XA-TA-MEN-TE assim. Quando você piscar, vai tá pagando imposto, contando grana, fazendo planilha chata e tomando decisões de fazer adulto mijar nas calças (tá, não é pra tanto, mas dá medo de decidir mesmo).

Eu não me considero empresáááária com toda a seriedade do mundo, mas tocar meu próprio ganha-pão já me mostrou que brincar de empresário não é um passeio no parquinho. É por isso que 1 em cada 4 empresas no Brasil fecha antes de completar 2 anos (é sério, joga aí no Google).

  • Trabalhar pra si, às vezes, é pior do que ter chefe.

Tudo bem que eu trabalhei/trabalho no mercado de publicidade, então eu já estava acostumada a me lascar bastante. Mas, nas raras vezes em que estive trabalhando em clientes, não agências, havia um certo respeito à vida do profissional. Dava minha hora de ir embora e eu podia ir sem maiores preocupações.

Essa visão romântica de que você nunca mais vai fazer hora-extra e vai trabalhar com muito mais leveza no seu próprio negócio é IRREAL. Sabe o que acontece na prática?

  1. Você pega todos os projetos que aparecerem na sua frente porque não sabe quando vai vir o próximo, né? E é importante garantir uma mínima margem de grana pra não se ferrar, caso nada apareça em breve.
  2. Com isso, você trabalha muito mais do que as 8h diárias previstas na CLT. Não porque alguém te mandou. Quando é assim, pelo menos você tem quem culpar. Você tá trabalhando a mais porque só se dividindo ao meio pra dar conta de todos os projetos que você mesmo pegou. Tá, assim, mais pra umas 11h/12h por dia.
  3. Você terminou a sua parte, que devia ser o suficiente, mas não é. Agora que começa a brincadeira: e-mail do RH, e-mail do contador pedindo coisas que não fazem sentido (só que devem fazer), pagamento do funcionário, emitir nota, a proposta pra mandar pro cliente que pediu pra rever os preços, ………..
  4. Acabou? Eba! Agora avisa pro seu cérebro. Você vai deitar na cama e ficar com o olho aberto, trincado, enquanto sua cabeça tá fundindo pensando em tudo que não devia.

Ele vai pensar em quanto você tem que acumular de grana pro caso de querer ter filhos. Vai pensar que você não sabe como vai ser o mês (financeiramente). Vai chegar à conclusão de que não dá pra tirar licença maternidade e deixar de atender os clientes durante tanto tempo. Vai pensar que vai dar merda se o cliente não renovar o contrato X.

Basicamente, a sua cabeça nunca mais vai desligar de trabalho.

Mentira, às vezes até vai. Mas é raridade mesmo.

  • Você não vai trabalhar quando e de onde quiser

Tá mais pra “você vai trabalhar o tempo todo e de todo lugar”.

Sim, porque tirar férias nunca mais será a mesma coisa. Uma semaninha até dá pra adiantar o trabalho e viajar, vai. Sejamos honestos. Mas imagina ter que adiantar o trabalho de um mês inteiro? Isso quando dá pra prever as demandas que vêm pelo mês, né?

E se você não tem quem faça ou não quer pagar alguém para te substituir, o mais provável é que o computador vá contigo pra onde você for. E nem sonhar em se meter onde a internet não pega!

Imagina que merda ter que voltar mais cedo pro hotel pra trabalhar. Imagina que merda estar no meio do city tour com a família lendo e-mails. E é difícil conseguir ter tudo tão planejado a ponto de não ser assim.

Até esse lance de trabalhar de casa é supervalorizado, sabia? Eu até que gosto, na maior parte do tempo. Realmente é legal poder comer em casa, fazer uma pausa quando quiser (cof cof nunca), mas tem muita gente que relata que perde o foco e acabar fazendo tarefas da casa, dificuldade de não ser interrompido pelos familiares ou até mesmo se sentir mal, por conta do isolamento.

O equilíbrio

Brincadeiras (muitas) e exageros (nem tantos assim) à parte, existe realmente uma questão a ser tratada aqui, especialmente nesse mês de setembro.

Existe uma carga enorme de apreensão em não ter uma renda fixa, especialmente se o caixa da sua empresa não é o suficiente pra segurar ela por um longo período de crise, por exemplo. Isso gera muita ansiedade e muito stress, que você vai precisar aprender a controlar para não afetar a sua saúde de várias formas.

E existe também uma pressão muito grande. Quando a coisa só depende de você ou está majoritariamente nas suas mãos, qualquer falha é a sua falha. E não é exatamente como se todos nós tivéssemos sido ensinados a gerir uma empresa, né, gente?

Na verdade, o contrário é muito mais comum: a maior parte dos empreendedores brasileiros criam suas empresas por NECESSIDADE, pra trazer renda extra pra casa ou pra resolver a questão do desemprego. Muitos sequer têm formação superior e acabam aprendendo tudo na marra mesmo.

Mas nós vivemos uma sociedade do sucesso, da performance, do desempenho. Externar suas preocupações financeiras, discutir as incertezas sobre o rumo da sua empresa ou mesmo admitir que não está no controle dá vergonha.

Com isso, vemos pessoas indo à falência porque não conseguiram pedir ajuda, famílias inteiras perdendo o sustento e ainda sendo pegas de surpresa com uma situação que nem sabiam que estava acontecendo há anos.

Há um peso grande em ser responsável por uma empresa. Principalmente, se dela dependerem outras famílias.

Não estou dizendo para você não abrir o seu negócio ou que o empreendedorismo é necessariamente uma furada. Pelo contrário, tem gente que se identifica com esse estilo de vida. E está tudo bem!!!

Mas, antes de tomar uma decisão que pode mudar totalmente o rumo da sua carreira, além de pesquisar bastante os prós e contras, eu sugiro buscar EQUILIBRO.

Só estando bem psicologicamente somos capazes de lidar com o fracasso, com a frustração nas negociações, com o cansaço, com a sensação de não estar dando conta, com a incerteza e com as horas invisíveis do empreendedorismo, aquelas que não estão descritas na planilha de orçamento, mas que cobram da sua mente.

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Yasmin Narcizo
Revista Subjetiva

Jornalista por formação, publicitária na raça e autora do “Não tô sabendo lidar”, à venda na Amazon. Observa o mundo com olhos de quem não entende nada mesmo.