“Enola Holmes” e “Aves de Rapina”: O cinema para jovens feito por algoritimo

Carlos Massari
Revista Subjetiva
Published in
10 min readOct 14, 2020

A década de 1980 foi o auge do cinema para jovens. Não é à toa que muitos de seus maiores clássicos ainda são presenças constantes na Sessão da Tarde e que mesmo as crianças de hoje se emocionam com histórias que parecem completamente deslocadas no tempo.

Não existia só uma grande quantidade de títulos de alto nível, mas também uma variedade de gêneros. Steven Spielberg vivia sua melhor fase na aventura e lançava a saga Indiana Jones e ET — O Extraterrestre enquanto produzia Os Goonies, a comédia escrachada tinha John Hughes e John Carpenter acabara de reinventar o slasher com uma roupagem então moderna.

Nenhum desses filmes era um exemplo de experimentalismo: Havia fórmulas, e as fórmulas funcionavam. Dentro das fórmulas, porém, personagens extremamente carismáticos e situações criativas conquistavam o público, o talento dos cineastas na composição de imagens ajudava com o algo a mais, com a transformação de mero filme legal em clássico.

Aos poucos, tudo foi se tornando repetitivo. Não é por acaso que a partir da década de 1990, dezenas de comédias adolescentes escrachadas e de slashers eram lançadas por ano, e quase sempre com qualidade duvidosa. Os dois diferenciais do sucesso oitentista eram a criatividade, que passava a desaparecer em uma máquina de xerox cinematográfica, e a qualidade dos cineastas, que não existia mais a partir do momento que qualquer nome genérico era contratado para operar a máquina de xerox cinematográfica.

É claro que já existiam pesquisas de mercado e que a indústria já estava de olho no que dava retorno financeiro. Pouco a pouco, isso se aperfeiçoou. Agora, na era das redes sociais e da geração que vive com telas vinte e quatro horas por dia, chegamos de vez no cinema de algoritimo.

Quando a Netflix lançou A Barraca do Beijo 2, alguns meses atrás, boa parte do público cinéfilo estranhou a duração: 131 minutos em uma comédia romântica destinada para adolescentes e pré-adolescentes? Algo não estava certo.

Mas é claro que a mega-empresa tem acesso a uma base de dados que nós não temos (e nunca teremos). E que nada do que ela faz é por acaso. Mesmo que um diretor megalomaníaco tivesse criado uma obra com quarenta minutos a mais do que deveria, esse tempo extra não sobreviveria à sala de edição.

Os 131 minutos de A Barraca do Beijo 2 existem porque a Netflix notou algum padrão que nós não sabemos qual é. E certamente devemos ficar de olho nas próximas comédias românticas para adolescentes e pré-adolescentes lançadas pela plataforma — elas provavelmente apresentarão metragem similar.

Mas a metragem, infelizmente, é o menor dos problemas relacionados a esse novo cinema de algoritimo.

Duas megaproduções de aventura/ação foram lançadas em 2020 tendo como público-alvo jovens mulheres na faixa da adolescência ou início da adultez: Aves de Rapina e Enola Holmes.

Uma é sobre uma anti-heroína que usa roupas e maquiagens extravagantes enquanto vive em um submundo de crime em uma megalópole fictícia moderna. Outra é sobre uma adolescente super inteligente que usa seus dons de detetive na Londres vitoriana.

Parece bem diferente, não? Mas elas são exatamente o mesmo filme.

A indústria cinematográfica conhece seu público muito bem. Sabe que a chamada geração Z tem capacidade de concentração extremamente reduzida devido ao bombardeio de telas e de informações que recebe. Sabe que existe um interesse crescente em política, principalmente em questões ligadas ao feminismo. Sabe que há uma predileção por outras mídias, como o YouTube e o Instagram, em relação ao velho ato de se sentar por duas horas para assistir a um filme.

Por isso, não importa se estamos em uma megalópole fictícia moderna ou na Londres vitoriana, os mesmos recursos precisam ser empregados. Não há nenhum espaço para autenticidade, para criatividade, para correr riscos. O que importa é seguir as normas e encher os bolsos de dinheiro.

Tanto em Enola Holmes como em Aves de Rapina, as protagonistas são carismáticas e há um investimento em ótimas atrizes já conhecidas pelo público jovem (Margot Robbie e Millie Bobby Brown) para vivê-las. Tanto em Enola Holmes como em Aves de Rapina, o ritmo é aceleradíssimo, às vezes flertando com um video-clipe. Não há espaço para respiro. A imagem cinematográfica contemplativa simplesmente não pertence a essas obras.

Mas até aí, tudo bem. Nós não podemos realmente esperar que filmes para adolescentes tenham trabalhos mais precisos no ritmo ou se preocupem com construções avançadas de linguagem. Nunca foi assim, nem nos áureos anos 1980. O cinema de algoritimo aparece de forma muito problemática em outras situações.

  1. Recursos visuais espertões são usados o tempo todo

Como combater a facilidade de desviar o olhar da tela de seu público? Não deixando que isso aconteça. A tática usada é a de complementar a imagem cinematográfica com outros tipos de recursos visuais o tempo todo. Deve haver letreiros, coisas engraçadas, cortes ou truques de edição que sejam um eterno preenchimento ao campo visual do espectador.

Em Aves de Rapina, isso é mais acentuado que em Enola Holmes, mas o segundo compensa o uso menor dos recursos visuais com uma quantidade absolutamente desproporcional e irritante de cenas com a protagonista quebrando a quarta parede. Mas já falaremos sobre isso a seguir.

O fato é que o cinema precisa das chamadas cenas de transição para acontecer. Não há como pular de um momento de ação para outro (a não ser em raras exceções), é necessário que se contextualize o que acontece e se localize a narrativa dentro de um espaço-tempo. Mas fazer isso sem quaisquer recursos extras faria com que o público-alvo desviasse a atenção totalmente e perdesse o interesse, portanto, sempre há algo extra na imagem.

Note que as quebras de quarta parede ou os recursos visuais acontecem quase sempre durante deslocamentos ou momentos mais “parados”. Claro que não é por acaso.

2. A linguagem cinematográfica dá lugar à linguagem do YouTube.

Se você é uma pessoa com repertório audiovisual e for apresentada a três sequências diferentes com uma pessoa isolada falando, provavelmente vai conseguir reconhecer qual é cinema, qual é televisão e qual é internet. Os enquadramentos não são os mesmos, as distâncias não são as mesmas, a forma de comunicação não é a mesma.

Em Aves de Rapina e Enola Holmes, os momentos de quebra da quarta parede não são, muitas vezes, feitos em linguagem cinematográfica. Eles se apropriam de enquadramentos e, principalmente, formas de comunicação que são claramente saídos do YouTube ou do Instagram.

Essa é uma forma de aproximar filme e público, de criar familiaridade e de manter o interesse. Só que, mais uma vez, gera uma completa falta de autenticidade na direção e na linguagem.

Enola Holmes usa desse recurso à exaustão, com a quarta parede sendo quebrada a cada dois ou três minutos. Dos 123 minutos de duração, metade é cinema, metade é vlog. E convenhamos que isso é ainda mais esquisito quando se trata da Londres vitoriana.

3. Mesmo com os recursos, não há necessidade de prestar atenção o tempo todo

Apesar da grande quantidade de recursos usada por Enola Holmes e Aves de Rapina para manter a atenção do público, a indústria parece ainda não ter fé que isso vai acontecer por um longo tempo.

Por isso, tudo o que acontece é minuciosamente explicado. Os flashbacks aparecem com frequência, mas o uso de palavras é ainda mais comum.

Eu sempre bato numa tecla aqui que é um conceito básico de linguagem cinematográfica: Cinema é imagem e som, diálogo é acessório. Cinema que usa diálogo para explicar o que está acontecendo é cinema de qualidade ruim.

É comum que Aves de Rapina ou Enola Holmes usem flashbacks ou diálogos para explicarem o que aconteceu antes e situarem o público antes de uma cena importante. A primeira consequência disso é realmente duvidar da capacidade de concentração do público, dizendo vem cá, se você perdeu algo, eu te pego pelo braço e não te deixo ficar sem entender. Ou, vai saber, talvez seja um incentivo para a falta de concentração e para mexer no celular durante a projeção.

Mas a segunda e mais importante consequência é que o cinema sempre foi um meio que demanda concentração única, que exige que o seu público seja só seu, sem desviar o olhar, sem dividir a atenção com outras tarefas. Ao usar tanto esse recurso da explicação do que acontece, a indústria assume que uma mudança está acontecendo, que certos públicos nunca vão ser exclusivos. É quase que uma declaração de abaixo a monogamia cinematográfica. Você pode mexer no celular, responder uma mensagem, jogar uma partida de Candy Crush (ainda é Candy Crush o jogo da moda?) sem deixar de entender o filme.

Em Enola Holmes, o buraco é um pouco mais embaixo: Situações óbvias precisam ser explicadas, como quando um código está sendo decifrado e a personagem diz números se transformam em letras, letras se transformam em palavras. Se eu fosse o público-alvo e um filme achasse que esse tipo de informação falada é necessária, sinceramente, eu me sentiria ofendido.

4. A política é usada de maneira completamente aleatória

Arlequina e Enola Holmes são mulheres empoderadas, fortes, capazes de resolverem tudo sozinhas. Até aí, excelente: O cinema sempre sentiu falta de mais protagonistas com essas características.

Mas em certo momento de Aves de Rapina, Arlequina apresenta um personagem dizendo que ele votou no Bernie, claramente criando uma conexão política com seu público. E Enola Holmes tem como trama principal a passagem de uma lei que dá novos direitos ao povo em detrimento à aristocracia.

O feminismo é ainda tema central: A mãe de Enola faz parte de um grupo secreto feminista e tem livros sobre o assunto. E, claro, o irmão da protagonista, que precisa ser caracterizado como o vilão, diz que isso é uma prova de que ela estava com problemas mentais.

São dois filmes que não estão interessados em uma discussão aprofundada sobre o assunto, mas que apenas o usam como isca. O feminismo está ali para servir como uma caricatura de o que é bom e o que é ruim, fazendo assim mais uma conexão emocional fácil com o público-alvo.

Absolutamente nada contra temas sociais serem usados como mote de filmes, absolutamente tudo contra eles serem usados como isca. Ou vocês acham que uma indústria que ainda paga quase o dobro para atores do que para atrizes está realmente interessa em feminismo?

Aves de Rapina e Enola Holmes parecem dois filmes feitos por máquinas automáticas. Os roteiros saíram de um computador baseados nas preferências e características de um público-alvo pré-definido. As imagens foram captadas levando em conta o que é que esse público-alvo costuma ver e quais linguagens imagéticas ele decifra com facilidade. Os temas foram escolhidos de acordo com o que é falado pelo mesmo público-alvo.

A autenticidade não existe. A direção não existe. Cada segundo da metragem é pensado não junto à camera, mas dentro de uma sala com uma apresentação de Power Point com dados coletados por um computador. E é pensado para vender.

O que era uma fórmula nos anos 1980 e passou aos poucos a ser uma fonte inesgotável de filmes ruins, hoje é um algoritimo preciso, bem montado, preparado como um cinema de robô feito com milhões de dólares e perfeitamente aparado para atingir pessoas específicas.

Mas qualquer filme ruim dos anos 1990 que passou pela máquina de xerox de slashers ou de comédias escrachadas ainda era mais cinema, no sentido original da palavra, do que coisas como Enola Holmes e Aves de Rapina.

Uma das maiores discussões da crítica cinematográfica no século XX foi a questão “a quem pertence o filme?”. Os franceses da Cahiers du Cinema falavam no cinema de autor, no qual tudo era responsabilidade do diretor, enquanto norte-americanos mais tradicionalistas e com uma visão do cinema como produto contestavam essa visão, pensando mais em um todo, um conjunto de profissionais de igual importância.

Eu acabei de escrever um texto imenso sobre dois filmes e nem cheguei a mencionar os nomes de seus diretores.

Mas isso, sinceramente, não importa. Nós estamos vivendo uma nova era. É a era do cinema de algoritimo.

O exemplo que eu usei aqui, sobre dois filmes para adolescentes e jovens adultas, é apenas um. As sagas de super-herói têm o mesmo problema, mas com algoritimo voltado para homens, e são tão chatas e artificiais quanto.

Cada vez mais, o que está no topo das bilheterias é o cinema de algoritimo. Por um longo tempo, imagino que vá funcionar assim. Cinema sem vida, cinema sem autenticidade, cinema sem magia. Muito distante do que fez sucesso na década de 1980.

Mas tenham calma: O cinema de autor vive. 2020, com a pandemia, tem gerado uma revolução em sua acessibilidade com os festivais online. Mais e mais pessoas podem ver obras que antes eram restritas a duas ou três salas de cinema nas capitais ou torrents em fóruns obscuros. E a acessibilidade é o melhor antídoto que existe ao domínio das máquinas.

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Carlos Massari
Revista Subjetiva

Jornalista, roteirista, escritor. Falo aqui sobre cinema e os esportes que não falo em outros lugares.