OPINIÃO
Enquanto louva maternidade, Amor de Mãe ignora o direito da mulher de não ter filhos
Mesmo com gravidez indesejada, novela escanteia debate sobre aborto
Já são quase dois meses desde a estreia de Amor de Mãe, atual novela das 21h da Rede Globo. De autoria de Manuela Dias (da minissérie Justiça), a trama estreou em 25 de novembro passado e trouxe ao horário nobre do canal uma história que destoa das apresentadas em folhetins anteriores: abandona a costumeira premissa da mocinha contra os vilões e costura seus desenlaces ao redor das histórias de três mães.
Dona Lurdes (Regina Casé) é a mãe nordestina, que tem um de seus filhos vendido para uma traficante de crianças e decide partir com os demais filhos para o Rio de Janeiro atrás da criança. Já Thelma (Adriana Esteves) é a mãe superprotetora, que tem em seu filho o seu maior tesouro e o protege com unhas e dentes após quase perdê-lo em um incêndio. E Vitória (Taís Araújo) é uma mãe que, aos 17 anos, desistiu de seu filho e, nos anos seguintes, após perder um bebê durante uma gravidez já avançada, luta para realizar o sonho da maternidade, agora que é uma advogada bem-sucedida.
No capítulo do último dia 11, após sofrer um ferimento provocado por uma bala perdida, Camila (Jéssica Ellen), filha adotiva de dona Lurdes, descobre estar grávida. Recém-formada na faculdade, a jovem professora acaba de ingressar em seu primeiro emprego e é uma grande ativista pela educação, entre outras causas. Seu desafio atual é impedir o fechamento da Colégio Luís Gama, onde trabalha, ameaçada pela ganância de Álvaro da Nóbrega (Irandhir Santos), que deseja instalar seu empreendimento no local.
Camila não quer um filho agora, apesar da paixão que sente por Danilo (Chay Suede) e o desejo de, na hora certa, tornar-se mãe. Ela expressou a vontade em capítulos anteriores e chegou a chorar ao receber a notícia, mas não de feclidade. No entanto, apesar da atuação em defesa dos Direitos Humanos, que abrangem os direitos das mulheres, em momento algum chegou a cogitar a possibilidade de realizar um aborto.
No Brasil, o aborto ainda é reconhecido como crime, a não ser em casos específicos, como de risco de vida para a mulher, quando a gravidez é resultante de um estupro ou se o feto for anencefálico. Porém, ignorar a questão também é ignorar que o aborto, além de uma questão de saúde pública e um problema social, também reflete o direito de uma mulher em tomar decisões sobre o seu próprio corpo e, sobretudo, os direcionamentos da sua vida. É algo que não dá para fingir que não existe e os debates sobre a questão são ruidosos. Camila, como uma ativista, não ignoraria a possibilidade, mesmo com as consequências.
Amor de Mãe não precisa se posicionar sobre a questão. Sua autora não deve atender às expectativas de todos que a assistem, mas desenvolver a história de acordo os seus planos. No entanto, ao escolher não levar a questão para a TV, Dias ignora que cerca de 1 milhão de brasileiras realizam abortos todos os anos e uma morre a cada dois dias em decorrência de procedimentos inseguros, geralmente mulheres negras, solteiras, sem nível avançado de escolaridade e pertencentes aos estratos sociais mais baixos da sociedade. Mulheres que diferem de Camila por uma coisa ou outra.
Esse poderia ser um caminho para o desdobramento da história da personagem. Ao tentar terminar a gravidez indesejada, Camila morreria. A novela abordaria a questão como vem abordando a violência e a corrupção policial, desigualdade social, proteção ao meio ambiente, entre outros temas, mesmo sem precisar firmar opiniões sobre a manutenção do aborto como crime ou sua descriminalização. Seria o retrato de mais um problema social do país.
O assunto foi tratado recentemente na série global Segunda Chamada: a personagem Rita (Nanda Costa, que hoje interpreta Érica em Amor de Mãe), mãe de filhos pequenos e sem a possibilidade de ter mais um ao descobrir estar novamente grávida enquanto tenta realizar uma laqueadura, decide abortar o filho por meios informais e, após complicações, acaba morrendo. A alternativa seria ir presa, já que é denunciada à polícia assim que dá entrada no hospital. Apesar do repeteco, falar sobre o aborto na série de televisão, exibida semanalmente às terças-feiras a partir das 22h30, não é o mesmo que colocá-la no horário nobre da Rede Globo de Televisão, o maior canal aberto do país.
Falar sobre o aborto também leva outra importante questão em consideração: o direito de uma mulher em escolher se e quando quer ser mãe. A partir da narrativa, Amor de Mãe trabalharia o tabu que cerca mulheres que decidem não ter filhos. Porém, Dias subtrai o desejo de sua personagem e a joga em uma situação onde ela fica e o bicho pega ou corre e o bicho come.
É o futuro pai reconhecendo o feto de poucas semanas como uma “pessoinha” e, em nenhum momento, sugerindo opção para a mãe que não deseja ter um filho naquele momento; a mãe da personagem dizendo que ela precisa ser forte a partir daquele momento para lidar com a condição (em uma sequência linda e importante entre Regina Casé e Jéssica Ellen, quase destruída pela narrativa da gravidez indesejada); e a sogra, responsável pela gravidez inesperada ao furar os preservativos utilizados pelo filho, em deleite por se tornar avó antes de perder a vida para um aneurisma inoperável.
São poucos os caminhos que a novela pode levar. Prevejo dois deles: caso a autora queira jogar mais lenha na fogueira de Thelma, que sofrerá as consequências ao ser desmascarada pelo filho, Camila pode ter um aborto espontâneo, o que levaria a sogra à loucura, forçando uma pressão ainda maior na nora para que ela a dê um neto antes de morrer, talvez até usando a doença como moeda de troca e incitando o filho a apoiá-la na realização de seu desejo final.
Em outro cenário, Camila segue com a gravidez, tem o filho e, aos trancos e barrancos, com o apoio do sempre presente namorado e um toque do adquirido amor de mãe, consegue superar as dificuldades, conciliar a carreira e a maternidade e prova que é possível ser mãe e bem sucedida profissionalmente. Pode funcionar, mas é uma narrativa descolada da realidade de muitas brasileiras, principalmente negras e periféricas como Camila.
Das opções, espero que a novela surpreenda. No entanto, considerando a situação atual de Vitória, que não sugere uma redenção da personagem por entregar o filho para adoção (a novela agrava a situação associando-a a tráfico de crianças, mas o caso não diferiria muito de uma adoção se não tivesse dinheiro envolvido, do qual a personagem não viu um centavo), isso não deve acontecer. Pelo andar da carruagem, Vitória carregará a culpa enquanto Raul (Murilo Benício) sairá como o bom pai que nunca soube do filho e, ao reencontrá-lo, fará de tudo para recuperar o tempo perdido.
Contudo, deixo uma questão que Manuela Dias não parece ter interesse em colocar na boca de Vitória: quem garante que Raul, jovem e longe de se tornar o milionário que se entrega totalmente ao filho nos dias dehoje, cumpriria com a palavra de que faria tudo pela criança se tivesse sabido da gravidez? Falar 25 anos depois, com a conta bancária recheada e uma mania de resolver tudo no dinheiro, é muito fácil. Mas em quantas certidões de crianças brasileiras o espaço com as informações do pai está em branco? Não vou deixar o suspense: de acordo com o último Censo Escolar realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e divulgado em 2013, são 5,5 milhões.