OPINIÃO

Enquanto louva maternidade, Amor de Mãe ignora o direito da mulher de não ter filhos

Mesmo com gravidez indesejada, novela escanteia debate sobre aborto

Henrique Nascimento
Revista Subjetiva

--

Já são quase dois meses desde a estreia de Amor de Mãe, atual novela das 21h da Rede Globo. De autoria de Manuela Dias (da minissérie Justiça), a trama estreou em 25 de novembro passado e trouxe ao horário nobre do canal uma história que destoa das apresentadas em folhetins anteriores: abandona a costumeira premissa da mocinha contra os vilões e costura seus desenlaces ao redor das histórias de três mães.

Vitória (Taís Araújo), Lurdes (Regina Casé) e Thelma (Adriana Esteves): protagonistas de Amor de Mãe (Reprodução/Globoplay)

Dona Lurdes (Regina Casé) é a mãe nordestina, que tem um de seus filhos vendido para uma traficante de crianças e decide partir com os demais filhos para o Rio de Janeiro atrás da criança. Já Thelma (Adriana Esteves) é a mãe superprotetora, que tem em seu filho o seu maior tesouro e o protege com unhas e dentes após quase perdê-lo em um incêndio. E Vitória (Taís Araújo) é uma mãe que, aos 17 anos, desistiu de seu filho e, nos anos seguintes, após perder um bebê durante uma gravidez já avançada, luta para realizar o sonho da maternidade, agora que é uma advogada bem-sucedida.

No capítulo do último dia 11, após sofrer um ferimento provocado por uma bala perdida, Camila (Jéssica Ellen), filha adotiva de dona Lurdes, descobre estar grávida. Recém-formada na faculdade, a jovem professora acaba de ingressar em seu primeiro emprego e é uma grande ativista pela educação, entre outras causas. Seu desafio atual é impedir o fechamento da Colégio Luís Gama, onde trabalha, ameaçada pela ganância de Álvaro da Nóbrega (Irandhir Santos), que deseja instalar seu empreendimento no local.

Camila (Jéssica Ellen): jovem é baleada e descobre que está grávida (Reprodução/Globoplay)

Camila não quer um filho agora, apesar da paixão que sente por Danilo (Chay Suede) e o desejo de, na hora certa, tornar-se mãe. Ela expressou a vontade em capítulos anteriores e chegou a chorar ao receber a notícia, mas não de feclidade. No entanto, apesar da atuação em defesa dos Direitos Humanos, que abrangem os direitos das mulheres, em momento algum chegou a cogitar a possibilidade de realizar um aborto.

No Brasil, o aborto ainda é reconhecido como crime, a não ser em casos específicos, como de risco de vida para a mulher, quando a gravidez é resultante de um estupro ou se o feto for anencefálico. Porém, ignorar a questão também é ignorar que o aborto, além de uma questão de saúde pública e um problema social, também reflete o direito de uma mulher em tomar decisões sobre o seu próprio corpo e, sobretudo, os direcionamentos da sua vida. É algo que não dá para fingir que não existe e os debates sobre a questão são ruidosos. Camila, como uma ativista, não ignoraria a possibilidade, mesmo com as consequências.

Professora, Camila é ativista pela educação (Reprodução/Globoplay)

Amor de Mãe não precisa se posicionar sobre a questão. Sua autora não deve atender às expectativas de todos que a assistem, mas desenvolver a história de acordo os seus planos. No entanto, ao escolher não levar a questão para a TV, Dias ignora que cerca de 1 milhão de brasileiras realizam abortos todos os anos e uma morre a cada dois dias em decorrência de procedimentos inseguros, geralmente mulheres negras, solteiras, sem nível avançado de escolaridade e pertencentes aos estratos sociais mais baixos da sociedade. Mulheres que diferem de Camila por uma coisa ou outra.

Esse poderia ser um caminho para o desdobramento da história da personagem. Ao tentar terminar a gravidez indesejada, Camila morreria. A novela abordaria a questão como vem abordando a violência e a corrupção policial, desigualdade social, proteção ao meio ambiente, entre outros temas, mesmo sem precisar firmar opiniões sobre a manutenção do aborto como crime ou sua descriminalização. Seria o retrato de mais um problema social do país.

Nanda Costa em cena da série Segunda Chamada: personagem morreu após realizar um aborto inseguro (Reprodução/Globoplay)

O assunto foi tratado recentemente na série global Segunda Chamada: a personagem Rita (Nanda Costa, que hoje interpreta Érica em Amor de Mãe), mãe de filhos pequenos e sem a possibilidade de ter mais um ao descobrir estar novamente grávida enquanto tenta realizar uma laqueadura, decide abortar o filho por meios informais e, após complicações, acaba morrendo. A alternativa seria ir presa, já que é denunciada à polícia assim que dá entrada no hospital. Apesar do repeteco, falar sobre o aborto na série de televisão, exibida semanalmente às terças-feiras a partir das 22h30, não é o mesmo que colocá-la no horário nobre da Rede Globo de Televisão, o maior canal aberto do país.

Falar sobre o aborto também leva outra importante questão em consideração: o direito de uma mulher em escolher se e quando quer ser mãe. A partir da narrativa, Amor de Mãe trabalharia o tabu que cerca mulheres que decidem não ter filhos. Porém, Dias subtrai o desejo de sua personagem e a joga em uma situação onde ela fica e o bicho pega ou corre e o bicho come.

É o futuro pai reconhecendo o feto de poucas semanas como uma “pessoinha” e, em nenhum momento, sugerindo opção para a mãe que não deseja ter um filho naquele momento; a mãe da personagem dizendo que ela precisa ser forte a partir daquele momento para lidar com a condição (em uma sequência linda e importante entre Regina Casé e Jéssica Ellen, quase destruída pela narrativa da gravidez indesejada); e a sogra, responsável pela gravidez inesperada ao furar os preservativos utilizados pelo filho, em deleite por se tornar avó antes de perder a vida para um aneurisma inoperável.

Em cena de Amor de Mãe, Thelma fura as camisinhas do filho para que ele engravide Camila (Reprodução/Globoplay)

São poucos os caminhos que a novela pode levar. Prevejo dois deles: caso a autora queira jogar mais lenha na fogueira de Thelma, que sofrerá as consequências ao ser desmascarada pelo filho, Camila pode ter um aborto espontâneo, o que levaria a sogra à loucura, forçando uma pressão ainda maior na nora para que ela a dê um neto antes de morrer, talvez até usando a doença como moeda de troca e incitando o filho a apoiá-la na realização de seu desejo final.

Em outro cenário, Camila segue com a gravidez, tem o filho e, aos trancos e barrancos, com o apoio do sempre presente namorado e um toque do adquirido amor de mãe, consegue superar as dificuldades, conciliar a carreira e a maternidade e prova que é possível ser mãe e bem sucedida profissionalmente. Pode funcionar, mas é uma narrativa descolada da realidade de muitas brasileiras, principalmente negras e periféricas como Camila.

Aos 17 anos, Vitória abriu mão do filho, mas o reencontrou 24 anos depois (Reprodução/Globoplay)

Das opções, espero que a novela surpreenda. No entanto, considerando a situação atual de Vitória, que não sugere uma redenção da personagem por entregar o filho para adoção (a novela agrava a situação associando-a a tráfico de crianças, mas o caso não diferiria muito de uma adoção se não tivesse dinheiro envolvido, do qual a personagem não viu um centavo), isso não deve acontecer. Pelo andar da carruagem, Vitória carregará a culpa enquanto Raul (Murilo Benício) sairá como o bom pai que nunca soube do filho e, ao reencontrá-lo, fará de tudo para recuperar o tempo perdido.

Contudo, deixo uma questão que Manuela Dias não parece ter interesse em colocar na boca de Vitória: quem garante que Raul, jovem e longe de se tornar o milionário que se entrega totalmente ao filho nos dias dehoje, cumpriria com a palavra de que faria tudo pela criança se tivesse sabido da gravidez? Falar 25 anos depois, com a conta bancária recheada e uma mania de resolver tudo no dinheiro, é muito fácil. Mas em quantas certidões de crianças brasileiras o espaço com as informações do pai está em branco? Não vou deixar o suspense: de acordo com o último Censo Escolar realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e divulgado em 2013, são 5,5 milhões.

--

--

Henrique Nascimento
Revista Subjetiva

Falo de cinema, de séries, de memes, da vida e, às vezes, falo um pouco sério.