Entre o irritante e o singular

Encontros #4

Rafael Oliveira
Revista Subjetiva
4 min readMar 20, 2021

--

— Essa coisa de gene é maluquice. Fica entre nós, não quero passar por louco nesse mundo cientifico. Mas não faz o menor sentido. Na verdade, até faz, mas é esse o proposito. Ninguém questiona coisas que parecem fazer sentido, a não ser seres humanos com senso de gato que quase podem perceber a presença das almas penadas nesse plano. Ou alienados que criam significância sem sentido aparente. Tudo é feito de outra forma totalmente diferente.

— Conte-me mais.

— O processo é assim. Tem um ser né, de substancia indecifrável. Ele (o ser, não o homem ser) está num aposento enorme, cheio de frasquinhos coloridos (se fossem todos líquidos preto e branco viria a ser visualmente desinteressante), todos cheios, com rótulos que indicam possíveis características das pessoas. Tem varias estantes, cada uma diz um elemento do individuo tipo olhos, modo de piscar, lugar onde irá ter pintas, tipo de tique, fobias, reações ao ser pego na mentira e etc. O ser substancial misturas uns 114 frasquinhos (ele quase faz reclamação no RR de tão demorado que é(RH dos seres)), e a pessoa está pronta. Isso tudo acontece enquanto o espermatozoide penetra o ovócito II, só para situar os locais em termos biológicos.

— E as coisas que cada individuo muda o crescer?

— Ai já fica em outro departamento.

— Coisas alheias que me irritam: gente que fala ruidosamente, de modo espasmódico, comendo palavras essenciais para estabelecer a comunicação. O pac-man da ansiedade. Quem se projeta hercúleo em qualquer relato, uma mistura de Gilderoy Lockhart com outro exemplo que não lembro.

— Conheço uma pessoa que rói as unhas do pé. Ela passou a frequentar um grupo de ansiosos anônimos. Como se fosse um AA, mas para pessoas com vícios decorrentes da ansiedade. Sua vibe se tornou algo meio “pratiquem comunicação não violenta” e cuida de 53 plantas. E contando.

— Havia um garoto no ensino médio que fazia cara de espanto para tudo. Estava sempre a descobrir que as fronteiras do mundo eram mais múltiplas e amplas do que as paredes do seu quarto. A Nárnia dele era o mundo real e o guarda-roupa, a porta de casa.

— Não gosto do modo digital influencer, sabe? Onde as pessoas se comunicam de modo imperativo. Parece que estão sempre te dando duas opções para você fazer no dia, quando na realidade só uma é a correta e você que se vire.

— Detesto gente que não entendeu que as grandes máximas da vida não são para todos os momentos e situações.

— Aquele cara definitivamente não sabe se expressar. Quando fala, sempre usa uma entonação que dá a entender que não terminou de falar. Tipo quando a gente fica na ponta do pé na sacada da janela tentando ver a briga na rua, mas mesmo assim só da pra ouvir uns ruídos.

— Minha chefe é toda descompensada. É um almoço de domingo em família que deu muito errado na adição de condimentos. Está ou em uma felicidade nervosa em um em uma tristeza assoberbante. A gente só consegue ficar assim olhando pra ela, com cautela, como quem está perto o suficiente de uma pessoa que gesticula freneticamente segurando um cutelo afiado. Uma microraiva surge e você é decapitado.

— Ele é como um taça de vinho tremendo em uma mão nervosa e avida por conteúdo. O conteúdo no caso é conhecimento, contudo não qualquer um. Estamos falando de querer saber meias verdades filosóficas sobre o mundo.

— Aquele tipo que chega num local, onde a fila indiana para entrar está enorme, mas mesmo assim se dirige até a entrada fingindo que não a viu, só para ser barrado por um segurança que diz que existe um fila, e ele faz cara de surpresa e espanto. O tipo cínico.

— Há também aquela pessoa travessão. Que interrompe você no meio da sua fala para explicar algo e, quando acaba, o clima não é agradável para continuar falando ou você simplesmente já perdeu a vontade.

— Uma moça do meu trabalho possuía um jeito irritante de ressignificar os fatos e pulverizar as crenças da minha vida com referências científicas. Sabe, gosto da ideia de tomar chazinho quente para me acalmar e não quero saber se isso na realidade não funciona e é placebo. Acredito na transmissão de energia mesmo que a ciência diga que isso apenas ocorre em termos de termodinâmica. Quero viver nessa ignorância.

— Ou aquela pessoa que sempre tem um “li sobre isso, deixe-me achar” e sai da troca ininterrupta de mensagens da conversa para procurar algo que talvez não vá ler. Não quero pausa, quero frenesi.

— Espera ai! eu sou essa pessoa.

— Oh, desculpe.

— Talvez você esteja falando de mim mesmo, minha autocritica severa sempre apontou meu ascendente em irritabilidade para os olhos alheios.

— Eu te amo tanto que não me importo mais. Ou já estou confortável, longe do cutelo afiado.

— Talvez seja exatamente isso e nós na verdade não achamos as pessoas irritantes ou chatas ou as detestamos. Só não empreendemos tempo suficiente para algumas se mostrarem e acabamos gerando uma aversão automática.

— Creio que não acredito nisso. Tem muita gente que detesto com muitos motivos.

— Minha autocritica diz que às vezes falo coisas que nem mesmo acredito.

— Tenho um amigo que facilmente consigo entender que tem muita coisa coexistindo nele, embora ao mesmo tempo as vezes sinta que não o entenda. Vivendo em um mundo fantástico, bem ornamentado, onde o show de malabarismo nunca acaba, apenas vira outro espetáculo. Ás vezes sinto que ele dissocia quando está comigo, vai para bem longe, encontra a reminiscência e vai tomar um xícara de chocolate quente, como ele gosta muito. E me deixa aqui sozinha plantada.

— Nossa mas esse ai é um tremendo de um criativo hahaha, queria ser assim.

— […]

— Ah… — Espanto.

Gostou? Clique nos aplausos — eles vão de 1 a 50 — deixe o seu comentário e nos acompanhem também nas outras redes sociais: Instagram e Twitter.

--

--

Rafael Oliveira
Revista Subjetiva

Você está nos meus dedos e nos meus pensamentos, embora só escreva de você para falar de mim. Rafaeloljs@gmail.com