Entre o sagrado sono e o silêncio

André Arrais
Revista Subjetiva
Published in
2 min readMar 16, 2022
Divulgação: Fran Jacquier

A ideia de canais de televisão saindo do ar não me é estranha, apesar da pouca idade. Durante o horário das três as cinco da manhã, aparecia o aviso que a emissora encerraria suas atividades, anunciava a programação do dia seguinte para entrar com uma estática. Eis um dead channel.

Um mero espaço de duas horas era suficiente para uma criança, assustada, acreditasse que qualquer coisa pudesse acontece, afinal, todos estavam dormindo, a cidade estava silenciosa e nada passava na televisão. O mundo estava quieto, dormindo, menos eu. Só depois de velho pude entender que, naquela época ainda analógica aos poucos sendo engolida pelo digital, era de fato um momento de descanso que ainda óbvio que o mundo não estava parado, se tratava um espaço-tempo de fato, “morto”. O que havia acontecido ontem haveria de atravessar esse túnel das duas horas para chegar no outro dia.

Isto se encerrou há muito tempo. Tudo é 24/7, nada dorme, apenas se fecha os olhos e sente-se os espasmos oculares moverem. Um sono nervoso e nada mais. Mui além do que o sono perdido, o silêncio também seguiu junto.

Se 2020 foi um ano movido a base de um sono ansioso, também foi movido a murmúrios baixos. Nada que se concretizasse uma palavra coesa, mas um mar de murmurinhos coletivos, angustiados e exasperados. O mesmo não pode ser dito sobre 2021, cujo sono não teve espaço, mas a cacofonia preencheu todo o espaço-tempo. 2022 prova-se da mesma regra, se não, misturado a tambores de guerra e emissários de heróis ou vilões.

Frases desconexas e gritos de desespero, palavras de ordem e ares perdidos por sufocamento, uníssonas em suas complexas desconexões, sem um começo discernível, tampouco com um final à vista. Beira ao impossível fazer do que são tantas linhas de informação em uma única, algo que será difícil de fazer até mesmo anos a frente. Os ecos (e os fantasmas) do passado vão reverberar, persistem nisso.

O processo temporal de mera duas horas, esse período interregno, tão frágil, agora menos se trata de uma fantasia infantil ou um desejo por um tempo perdido, por demasia analógico pra ser resgatado. Aqui, não se trata mais de não saber o que acontece, mas de não ser apto de alcançar a meditação necessária para colocar as peças nos lugares que se devem.

Se antes a necessidade do grito permeava a todos, agora falamos em ritmo ansioso. Nuclear é a palavra escondida e o “afeto” que permeia agora o discurso público e quem o instrumentaliza sabe que disso só traz o medo. Como dito antes, os ecos e os fantasmas do passado retornam dos anos 70.

Antes imploraria pelos dead channels uma vez mais, reconheço que, esse tempo em nada surtiria efeito, ainda dormiria ansioso, como todos os outros.

--

--

André Arrais
Revista Subjetiva

Graduado em Direito, escritor e invariavelmente cansado.