A foto — muito mal tirada, graças ao sucesso da mesa — mostra os jornalistas Mario Cesar Carvalho e Sérgio Rodrigues, acompanhados do mediador da mesa, cujo nome eu não ouvi, na Casa Folha, na FLIP 2019.

Especial (off-)FLIP: "A Linguagem de 'Os Sertões'" com Sérgio Rodrigues e Mario Cesar Carvalho

Jornalismo, memória e resistência em torno do autor homenageado da FLIP 2019

Ligia Thomaz Vieira Leite
Revista Subjetiva
Published in
6 min readJul 23, 2019

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Não vou dizer que conhecia profundamente Sérgio Rodrigues ou mesmo Mario Cesar Carvalho antes da FLIP. Jornalismo nunca foi muito a minha praia. Mas estava curiosa para ver a mesa do autor citado pela Heloísa Seixas naquela manhã. , por outro lado, estava muito ansioso para ver seu autor contemporâneo de prosa favorito — Sérgio Rodrigues — falando sobre um livro que ele tanto queria ler. Fomos e me encantei.

Se o objetivo da palestra era que o público perdesse o medo de ler "Os Sertões", comigo, posso afirmar que a mesa cumpriu seu papel.

Pra começar a ler "Os Sertões"

É Mario quem começa falando que só leu a obra nos anos 90, quando trabalhava com Roberto Ventura, um dos grandes pesquisadores da obra, que lhe deu uma dica de leitura: ler a primeira parte do livro em voz alta e não pulá-la, como indicam alguns professores. É uma parte difícil, por ter uma carga de jargões da área de geologia muito alta, que obriga o leitor a consultar o dicionário com alguma frequência. "O encantamento do texto da primeira parte é tão gigante que você nunca mais na vida vai esquecer aqueles termos."

Sugere, ainda, que a leitura seja acompanhada do guia de leitura elaborado por Roberto Ventura, em sua opinião muito didático.

Sérgio Rodrigues, por sua vez, leu "Os Sertões", pela primeira vez nos anos 80, com muita dificuldade. Antes disso, só tinha tido contato com trechos. Teve mais dificuldade na parte "A Terra" e se debateu muito com a questão de, aquilo que no livro é considerado ciência, ser hoje obsoleto. Mas, afirma que "[o livro] acaba te premiando por esse esforço" com a "história saborosa" da arte de "A luta". Relaciona, ainda, com "O Nome da Rosa", do Umberto Eco, que tem uma estrutura similar nesse sentido.

Ao mesmo tempo, Sérgio não determina uma ordem pela qual o leitor deve se embrenhar na obra, mas acredita que a escolha deve ficar por sua conta.

O best-seller

Quando "Os Sertões" chega às livrarias, em 1902, já há diversas obra denunciando a perversidade do massacre de Canudos. Então, por que fica ainda hoje este livro em específico como marca?

Mario Cesar Carvalho diz que Euclides demora a escrever o livro talvez por não saber o que escrever. E ele inova porque, como muita gente já estava denunciando o massacre, passa a colocar sua interpretação. Acaba, assim, incrementando o texto com as teorias raciais, a geologia, que criam esse texto que vemos. A interpretação, como a linguagem, é chave para entender o sucesso de "Os Sertões".

Lembra o jornalista que Euclides foi a Canudos como Adido do Ministro da Guerra, com pouquíssima autonomia, e mesmo em seus textos não censurados, era muito comedido. E, no livro, Euclides vai tentar ir contra esse comedimento que estava presente na sua cobertura jornalística. "'Os Sertões' é o maior 'erramos' da história do jornalismo."

Mario Cesar Carvalho destaca, ainda, a questão da inadequação de Euclides como jornalista para cobrir a guerra. Afirma ter esta inadequação uma relação muito forte com a permanência de seu texto — "e com sua originalidade", complementa Sérgio Rodrigues.

Heranças de Canudos

No Brasil, Canudos virou um símbolo contra-sistêmico. Mas Sérgio Rodrigues acredita que sua principal herança seja "violência com que o estado brasileiro é capaz e agir contra seus excluídos". Canudos acaba sendo muito o nosso lembrete, muito por conta do Euclides, dessa violência, que nunca chegou a ser ultrapassada — e hoje enfrenta momentos especificamente mal-intencionadas.

Fala-se muito da dificuldade de Canudos, mas discute-se pouco a maestria com que ele faz o percurso: do difícil para o fácil. No final, o texto poderia ter sido escrito pelo Graciliano Ramos ou mesmo pelo Fernando Sabino, tal a clareza do discurso e a simplicidade do vocabulário. É como se o autor tivesse tido alguma dificuldade para entrar naquele mundo, mas que, uma vez dentro, ele já se sentisse confortável para se permitir ser direto e claro com o leitor, fato que torna seu texto muito moderno.

Mario Cesar Carvalho concorda e acha importante falar também da própria interpretação que é feita do papel do Estado na guerra de Canudos. Acredita que a esquerda costuma idealizar o que foi Canudos, tendo elevado o Conselheiro a um papel que talvez ele nunca tenha tido: era um monarquista que contesta o sistema com base na perda de algumas funções da igreja. Acha estranho que seja este um símbolo de luta para a esquerda nacional.

Canudos, afirma, não era aquela comunidade utópica que se imagina. Era uma das maiores cidades da Bahia, com comércio forte e uma classe média existente, "um regime capitalista como outro qualquer", que só começa a incomodar quando passa a (i) contestar os registros em cartórios, (ii) não pagar impostos e (iii) atrair a mão-de-obra barata dos fazendeiros locais.

Trata, ainda, do tema do Sebastianismo, que Euclides atribui no livro ao Conselheiro e Roberto Ventura, em seu livro, demonstra não ser real. Afirma que a divulgação dessa ideia de sebastianismo tinha muito a ver com as propagandas do governo republicano contra Canudos, que se utilizou de fake news para justificar o massacre. "Era a URSAL da época" ironizou o mediador.

Sérgio Rodrigues concorda e ainda destaca a potência da leitura de "Os Sertões" na interpretação do Brasil: "Eu acho que ajuda muito a interpretar o Brasil, mas não por um viés simplista; acho que o Brasil, na verdade, está inteiro ali, de certa forma; acho que a gente está vivendo ainda na mesma era histórica; os conflitos essenciais [do livro] não foram resolvidos."

Traz, ainda, mais uma vez, o debate dos motivos de ser ainda hoje Euclides da Cunha tão lido, mesmo com tantos erros factuais: "O Euclides era um baita de um escritor".

O livro, afirma Mario, deve ser lido sem que se separe a interpretação do autor, dos fatos que ele narra, porque "o fato de ele estar presente naquela cena, é fundamental para ele mudar de posição". "Se ele não tivesse lá como jornalista, esse livro não teria um milésimo da potência que tem".

Da linguagem

Mario Cesar Carvalho trata das misturas que Euclides faz, usando na narrativa da guerra elementos das tragédias gregas, por exemplo e Sérgio Rodrigues complementa, afirmando que ele traz novos elementos para o imaginário nacional, lembrando-o do que Melville faz com Moby Dick, na literatura norte-americana: "um épico do novo mundo" com um final trágico e ressonâncias gregas que antes não estavam acessíveis aos escritores daqui.

Mario também relaciona o texto de Euclides ao livro Coração das Trevas, de Joseph Conrad — recém-lançado pela Editora Antofágica — , mas dessa vez pela potência das imagens que usa para não descrever a violência explicitamente, mas sim por meio de paralelos.

Destaca, ainda, o fato de Euclides não ter visto a parte final de Canudos, fatos que narra com base nos relatos de outros jornalistas.

Tratam, ainda, da identificação do texto de Euclides com o "jornalismo literário", mas Mario resiste a esta classificação por não entender este como um conceito que ajuda a compreender o livro. Sérgio concorda, afirmando que o feito de Euclides encontra paralelos na literatura de sua época, e que aloca-lo no gênero do jornalismo literário é um anacronismo.

Terminam falando do fascínio que escritores e intelectuais estrangeiros criaram sobre Canudos e do imaginário que acabou circundando a guerra. Alguns dos autores citados são Borges e Vargas Llosa, mas Roberto Ventura cita outros em seu guia de leitura de "Os Sertões".

O guia de leitura de Roberto Ventura para "Os Sertões" pode ser encontrado clicando aqui e o último livro de Sérgio Rodrigues, aqui.

*Esse texto faz parte da cobertura da Subjetiva na FLIP: Festa Literária Internacional de Paraty, e você pode ler mais sobre a Festa em:

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