A imagem mostra — em baixíssima qualidade, pelo que peço perdão — Joelle Taylor, à esquerda, e Nina George, à direita, em frente ao altar da Igreja de Santa Rita de Cássia, em Paraty, durante sua fala na Casa Europa.

Especial (off-) FLIP: "Políticas de memória, historiografias hegemônicas e narrativas dissidentes" com Nina George e Joelle Taylor

Uma mesa sobre a importância da produção de memória

Revista Subjetiva
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5 min readJul 28, 2019

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Nessa FLIP, as mesas que assisti na Casa Europa foram as que mais me marcaram. Ambas no sábado. Ambas na igreja. Só com conferencistas mulheres. Algo naquele clima sacro, com aquelas mulheres falando de resistência mexeu, não com o meu eu intelectual que agora escreve esse resumo, mas com as minhas emoções. E foi inacreditável. Peço desculpas de antemão porque sei que nada nesse texto poderá mexer com vocês metade do que aquelas horas na Igreja de Santa Rita mexeu comigo.

Não conhecia Nina George, nem Joelle Taylor quando entrei na Igreja. Tinha ouvido que a Nina estava lançando um livro ali mesmo, na FLIP, e li no folheto que peguei no anexo da Casa Europa que Joelle era poeta e que participava de slams na Inglaterra. Só.

Da memória cultural — e das vozes que a criam:

É Joelle Taylor quem começa falando. Se apresenta para o público brasileiro como slammer, a primeira mulher a ganhar o UK Slam Championship, no qual ela decidiu entrar de última hora. Começa tratando da importância do slam como forma de facilitar o acesso à arte e à cultura a pessoas socialmente marginalizadas.

"Slam is cultural terrorism" [O slam é terrorismo cultural], afirma. Diz que é uma ferramenta: permite que as pessoas se ouçam e possam questionar as vozes dominantes, o discurso hegemônico. E com a força que a direita conservadora vem ganhando em todo o mundo, destaca, se torna cada vez mais importante ouvir as vozes periféricas. Se coloca, ainda, como parte dessas vozes da periferia, afirmando que seu último livro, "Songs my enemy taught me", conta a sua própria história. E avisa a todos que se encontram em situações similares:

"This great grief and loss can create extraordinary art." [Esse sentimento de perda enorme pode criar uma arte extraordinária].

Nina George durante sua fala, em frente ao altar da Igreja de Santa Rita de Cássia.

Nina George fala em seguida, focando no tema da memória. "Can we bend memories?" [Nós conseguimos mudar as memórias?], começa. Fala da importância da memória na construção do indivíduo e depois se volta para a memória coletiva, aquela passível de ser suprimida pelas instituições — família, Estado e economia.

Afirma que, graças à tecnologia, a memória está cada vez mais fragmentada, digitalizada, mas destaca a importância de que preservemos o que chama de "memória analógica" para que possamos dar às pessoas do futuro a possibilidade de separar memórias reais e irreais, de pensar sobre o que querem lembrar, de construir por si próprios a sua identidade.

"Every country that refuses to preserve their analogue memory is renegating its humanity" [Todo país que se recusa a preservar suas memórias analógicas está renegando sua humanidade]"

Afirma que preservar a cultura é um serviço à democracia, já que ela é extremamente necessária para combater totalitarismos e populismos. Nossa luta, destaca, deve necessariamente passar pela cultura, conversando, assim, com os pontos levantados por Joelle. A chave é "defending values opposed to the ones from the past" [defender valores opostos àqueles defendidos no passado].

Sobre ocupar espaços que não foram feitos para nós

Quando perguntadas sobre a ocupação espaços de museus, igrejas e instituições tradicionais, ambas foram contundentes em destacar a importância destes processos. "We exist to pass our experiences to one another" [nós existimos para passar nossas experiências uns para os outros], afirma Joelle, destacando que temos em nossas vozes e corpos o mais importante streamer de dados, algo de que não devemos nos esquecer.

Nesse sentido, ambas confirmam que a importância de trazer pessoas marginalizadas a espaços que não foram feitos para elas reside na possibilidade de transformá-los. E torná-los, para as próximas gerações, espaços mais amigáveis, mais adequados para nos receber.

Nina George vai além e destaca que o ser humano é mais orientado por emoções do que por fatos e que, nesse sentido, a experiência ganha importância nesse processo de ocupação de espaços tradicionalmente excludentes. "You have to touch emotion and, for that, meeting, feeling the group and the place you're in" [Você deve tocar a emoção e, para isso, encontrar, sentir o grupo, o espaço].

Lembra da importância de devolver a determinados grupos o que a elas originalmente pertence e de perguntar às pessoas o que elas querem guardar. "You make the museum happen" [Vocês fazem o museu acontecer].

Sobre seus livros

Ambas também falaram um pouco sobre seus livros. Joelle conta que “Songs my enemy taught me” é sua tentativa de mostrar às pessoas que elas podem se libertar de situações terríveis e "dar a volta por cima". O livro reflete um pouco de seus sentimentos e conta um tanto da história de quando foi estuprada por 3 soldados, ainda criança. É um manifesto. Contra o terrorismo sexual que vivem tantas mulheres ao redor do globo.

Lê um trecho de um de seus poemas e une a platéia em lágrimas e risos. Termina deixando-nos todos em silêncio profundo. Sem conseguir esboçar reação diante de tanto sentimento posto em palavras. Peço desculpas, já que não consigo nem tentar reproduzir parte do que foi lido, pois não o faria com a mesma potência. Mas indico veementemente que busquem videos da Joelle recitando seus poemas. Não se arrependerão.

"When the world ended, nobody noticed" [Quando o mundo acabou, ninguém percebeu].

Nina George é mais política, talvez por estar efetivamente lançando um livro ali. Conta que seu "Livro dos sonhos" fala justamente da memória e sobre este seu papel na formação da identidade pessoal de alguém. Um livro de ficção com um intenso estudo por trás.

"The secret of salvation is memory" [O segredo da salvação é a memória].

Terminou pedindo que nos levantássemos e contemplássemos as pessoas que enchiam aquela igreja. Que nos cumprimentássemos. Sorríssemos. Que fizéssemos daquela uma experiência de sentimento. Que fizéssemos das nossas tantas experiências em Paraty, sentimentos. Memória.

Você pode comprar o último livro de Nina George na Amazon clicando aqui e o de Joelle clicando aqui.

*Esse texto faz parte da cobertura da Subjetiva na FLIP: Festa Literária Internacional de Paraty, e você pode ler mais sobre a Festa em:

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