A imagem mostra o altar da Igreja de Santa Rita ocupado por Katja Petrowskaja e Grada Kilomba, junto com os moderadores da mesa. Em primeiro plano, vemos numerosas cabeças de espectadores.

Especial (off-)FLIP: "Políticas de memória: historiografias hegemônicas e narrativas dissidentes" com Grada Kilomba e Katja Petrowskaja

Uma mesa sobre memória e desterritorialização

Ligia Thomaz Vieira Leite
Revista Subjetiva
Published in
5 min readAug 7, 2019

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Um dos meus objetivos dessa FLIP era assistir a uma mesa com a Grada Kilomba. Esbarrei, por acaso, com alguém que me deu o panfleto anunciando sua fala na Casa Europa no dia anterior e me animei. Organizei todo o meu dia para poder vê-la, e saí correndo da mesa na Casa Paratodxs para tentar chegar a tempo. Cheguei com a Igreja de Santa Rita cheia e Grada Kilomba e Katja Petrowskaja já sentadas, prontas para iniciar suas falas.

Desterritorialização e literatura

É Grada Kilomba quem começa falando. Com sua voz grave e sotaque português forte conta que seu "Memórias da plantação" foi lançado há mais de 10 anos, em inglês, mas só agora chega ao Brasil. Essa dificuldade de publicação de autores negros nos países de língua portuguesa, diz, tem a ver com a romantização da história colonial, que gera uma dificuldade de publicação de obras que questionem esta ordem.

E foi muito deste sentimento colonial que a levou a escrever. Portuguesa, descendente de angolanos e santomenses, conta que na Lisboa em que cresceu, os descendentes de africanos eram muito excluídos social e culturalmente. "Escrevi para me encontrar", afirma, destacando que escreveu em inglês pois buscava um espaço em que pudesse desenvolver sua própria linguagem e viu na língua inglesa um instrumento para falar de si sem se subalternizar, vez que o português ainda carrega profundas marcas do regime colonial e o inglês, por sua vez, foi muito marcado pelos movimentos de literatura negra, que desmontaram a colonialidade e o patriarcalismo da língua.

Katja Petrowskaja fala em seguida, na mesma temática. Ucrâniana, conta que escreveu seu livro "Talvez Esther" em alemão e que apesar de não ter vivido a história colonial clássica, nasceu sob o domínio do "Império Russo", o que, para ela, vinda de família judia, também tem um significado de desterritorialização. "My story is not an original story" [Minha história não é original], diz. É a história do judeu do leste europeu, completa, destacando que não escreveu com a intenção de se colocar como mais uma das vítimas.

"Storytelling was the only weapon we could allow ourselves to have" [a habilidade de contar histórias era a única arma que podíamos ter], afirma, falando sobre seu tempo na União Soviética. E destaca que seu livro "Talvez esther" tem o objetivo de usar esse poder de contar histórias para conscientizar. A história dos outros, também é a nossa.

Em seguida, aprofunda na temática do livro, que conta a história da avó de seu pai. Para isso, teve que explorar as fronteiras entre fato e ficção, já que conseguiu saber bastante de sua história, mas muitas coisas restaram desconhecidas, como seu nome, que talvez fosse Esther, mas ela não tinha como saber com certeza.

Sobre ser uma mulher negra e ocupar espaços de discurso hegemônico

Grada fala também da importância de que os países repensem sua história colonial. "Feminismo dividiu o mundo entre homens e mulheres, mas esqueceu-se do colonialismo", já que as pessoas seguem buscando justificativas quando são levadas a tratar de sua história colonial. Nesse sentido, a pensadora destaca a importância de que tragamos luz aos conhecimentos que temos e ao que classificamos como tal.

Destaca que os conhecimentos estão intrinsecamente ligados às narrativas de poder e que as mulheres negras foram completamente excluídas destes espaços. Nesse sentido, ganha importância a ideia da epistemologia, que nos lembra que sempre produzimos conhecimento a partir de um determinado lugar e que o conhecimento jamais será apolítico, de modo que, enquanto tentarmos isolá-lo da política, ele estará servindo à ordem vigente. Esta, afirma, é uma das chaves para que possamos combater as estruturas desde dentro delas; transformar o conhecimento teórico em performativo e repensar a quem ele serve.

Nesse ponto, Katja Pretrowskaja intervém e destaca que somos produto de nossa herança cultural, mas não podemos reduzir-nos a ela.

Sobre o processo de formulação do conhecimento

Perguntada, Grada Kilomba fala um pouco sobre a importância da linguagem para pôr em cheque os processos de conhecimento. Destaca, de início, a importância da criação de uma linguagem em que não sejamos colocados como desviantes e usa como exemplo o fato de as teorias da libertação só existirem, na língua portuguesa, no masculino, nunca no feminino, pela própria ordem da língua.

Destacou a importância da criação de uma memória inclusiva para que o processo de conhecimento vá além da ordem vigente.

Sobre a coletivização da memória individual no espaço

A última pergunta também foi para Grada e pedia que ela solucionasse uma importante questão levantada pela mesa: como, então, coletivizar a memória individual no espaço? Especialmente quando levando em consideração modelos de governo autoritários.

Grada responde que este é um processo complexo, especialmente no tocante à memória negra. Com a diáspora africana, os povos negros sofreram um profundo apagamento de sua cultura em diversos âmbitos, de modo que a mulher negra perdeu o acesso à sua memória documental e foi vítima de diversas formas de silenciamento e sujeita a diversas proibições (como a de ser ensinada a ler e escrever).

A partir deste processo, a história negra passou a ser majoritariamente oral e ganhou importância a presença da música que, em locais em que a cultura negra era fortemente criminalizada, passou a ser uma importante forma de narrativa. A música, assim, com a proibição do discurso, tornou-se um ambiente em que era permitido narra a política, a história e, em coletivo, recuperar-se do trauma colonial.

Com todo esse cenário, ela destaca a importância, para o processo de coletivização da memória individual das populações marginalizadas, do pensamento e do debate sobre a marginalização dos corpos a partir de uma nova episteme. Levanta, antes de ser aplaudida de pé pelo público da Igreja, a importância, principalmente em momentos políticos tão retrógrados quanto os que vivemos, de se "interromper os espaços com o futuro, pois nós somos o futuro", assim, coloca a ocupação de espaços como ferramenta de grande importância para impedir que se aprofundem ainda mais os retrocessos.

O livro de Grada Kilomba "Memórias da Plantação: episódios da racismo cotidiano" pode ser comprado clicando aqui e o de Katja Petrowskaja "Talvez Esther" aqui.

Esse é o último texto (eu juro!) da minha participação na cobertura da Subjetiva na FLIP: Festa Literária Internacional de Paraty, e você pode ler o post anterior em:

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