Esse viver na corda bamba entre a ausência e a exaustão

Dos Paulos do mundo, eu fecho sempre com o Freire, jamais com o Guedes

Ana C. Moura
Revista Subjetiva
4 min readSep 4, 2020

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colagem própria, feita a partir da caixa de Ímã Poesia e da pintura O Grito, de Edvard Munch, ano 1893, óleo sobre tela, têmpera e pastel sobre cartão.

Tão ausente, e dando as caras, sempre meio bicho do mato com as redes em geral, essa relação dúbia e conflitante. Tão ausente principalmente porque exausta.

É duro defender o óbvio, e por vezes eu queria muito ter mil tentáculos para tecer profundidades sobre tudo o que me toca e me atravessa. Porque é tudo. As desigualdades, as injustiças, os absurdos todos, todos os dias, ainda mais neste circo dos horrores, distopia da pior espécie, com o contexto todo descarrilhado (com grande ajuda do governo, convenhamos) de genocídio, extermínio, aniquilação e todo o vocabulário possível para dizer da perda, da terra arrasada.

Mas não dá para acompanhar tudo, ao menos não com palavras, ao menos não com palavras públicas. Então, assino o meu atestado de incapacidade de fazer isso.

Uma das inúmeras últimas notícias (porque tudo se opera no tiroteio, no bombardeio do simultâneo) tem sido a reforma tributária desse disparate de contexto, dessa gente canalha.

Entre os vários pontos que a perpassam — inclusive os de não atacar diretamente os problemas de fato da tributação do sistema brasileiro — , ela coloca o livro na proposta de taxação, numa alíquota de 12% de uma modalidade de tributo chamada contribuição (!).

Isso acirra um processo já em curso de crise do mercado editorial e anuncia de vez o que nunca foi segredo: a vontade esfomeada de promover a derrocada de defender o livro como portal de acesso a ecoar outros mundos, a literatura como imaginação possível. Tantas fomes. O livro, esse objeto-produto-mercadoria-instrumento, cercado por tantas mãos no entre, não apenas nas pontas leitor-autor. É preciso humanizar todo mundo. E parte da humanização se faz pela (re)construção da memória.

Se a democratização da leitura sempre foi precária, ainda mais o será com essa proposta. Se os profissionais do livro já enfrentam perrengues há tanto, o cenário dói ainda mais. “Não quero saber do lirismo que não é libertação”, Bandeira escreve na trincheira. Encontro sentido e potência nisso. E me dou o direito de ser, aqui e agora, menos informativa, mais expositiva do sentir. Há alguma validade nisso. E há tanta gente produzindo conteúdo sério, consistente e detalhado sobre os fatos. Olhemos essas contribuições (essa contribuição, sim, nos interessa) com cuidado e agradecimento.

E há tantas pautas urgentes que existem junto, feito furo que a gente tenta se desdobrar para tapar, furo pra todo lado em uma balsa onde quase todo mundo afunda. Eu também. Há furo no barco e há tanta fuga desse palavreado que gosta de fazer casa aqui dentro.

Mesmo ausente com frequência no on-line das redes sociais, no post, repost, tweet, retweet e por aí vai, sigo atenta e furiosa, a escutar, a aprender com quem brada e ecoa. A fúria e o afeto é o que vai conseguir nos mobilizar contra o vocabulário das perdas e das ausências, afinal.

Defender aquilo em que a gente acredita. Do jeito que a gente puder fazer, no off-line e também no on-line, no que nos couber, no que for possível e viável. E que a gente acredite no que fortaleça o coro dos descontentes, no que seja busca efetiva por um mundo melhor.

Entender os problemas na raiz e as violências na estrutura (de contradições do capital, de classe, de raça, de gênero e todos os recortes possíveis). E que a gente identifique os detalhes de como e onde se entrelaçam tantas forças.

Abandonar superficialidades, falsas simetrias, simplismos. E que a gente rejeite elitismos, necropolíticas e todos os tipos de morte que esse projeto torto de poder deseja, marcando ainda mais certos corpos.

Não aguento mais. Sigo ausente, exausta, vai saber lá por quanto tempo ausente, por quanto tempo exausta. Estar presente aqui ou acolá não é deixar de estar exausta. Estar ausente também não. É estranho. Assino meu atestado de incapacidade de ser polvo com oito ou com mil tentáculos. Mas ainda sou povo, então sigo buscando formas orgânicas e digitais — afinal, é o que tem dado para fazer em matéria de pandemia, não bastasse tudo — de viver e de pensar-sentir-imaginar os mundos existentes e os possíveis, à flor da pele, da latência do caos. Na palavra, no silêncio e na revolução que existe nisso tudo.

Ainda a ausência e a exaustão, mas, dos Paulos do mundo, eu fecho sempre com o Freire, jamais com o Guedes. E quero usar o desejo, a fúria, o afeto como pontes e lanças.

Aqui, o link da petição Defenda o Livro, pela #DefendaOLivro.

Abaixo, alguns conteúdos de pessoas incríveis que, por trás ou não de alguma instituição, conseguiram amalgamar a sensibilidade com muita informação e lucidez sobre isso tudo. Textos de pessoas que, por trás ou não de alguma instituição, merecem ser acompanhadas por outras coisas também, mantidas no radar de produzir conteúdo que vale a pena. Tenho alguma birra em fazer listas porque nunca consigo colocar tudo e todo mundo (essa mania de querer ser polvo e abraçar o mundo na totalidade, de uma vez), fica muita gente boa (e que admiro) de fora. Mas fica a incompletude como possibilidade de continuidade e de agregação sempre:

Dois textos sobre o assunto, na Subjetiva, aqui mesmo no Medium: um da Thaís Campolina e outro da Cecília do Nascimento;

Post sobre o assunto, no Instagram da Editora Autonomia Literária;

Post sobre o assunto, no Instagram da Fazia Poesia, que também está no Medium;

Post sobre o assunto, no Instagram da Tamy Ghannan, @literatamy (que também tem perfil no Medium);

Post sobre o assunto, no Instagram da Camilla Dias, @camillaeseuslivros;

Post sobre o assunto, no Instagram da Pam Araújo, @apamaraujo;

Vídeo sobre o assunto, da Rita Von Hunty, do canal Tempero Drag.

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Ana C. Moura
Revista Subjetiva

• Poeta • Revisora • Tradutora • Editora de Projetos da Fazia Poesia • A fúria como fôlego • A palavra como teimosia • O lirismo como libertação •