Esses “garotos” e seus “programas”

Uma pesquisa etnográfica com garotos de programa em São Paulo

_erinhoos
Revista Subjetiva
7 min readFeb 16, 2021

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“Gay Semiotics”, Hal Fischer, 1977.

Existe muita curiosidade a respeito de como é a vida daqueles e daquelas que se sustentam financeiramente a partir do sexo. Guerreiras ou preguiçosas, precarizados ou vagabundos, profissionais ou pervertidos… É assim que muitas pessoas enxergam o fenômeno da prostituição — ou trabalho sexual, termo que por vezes vem sendo apontado como mais adequado ao jargão dos movimentos sociais.

O interesse pela pesquisa da qual me venho ocupando no doutorado em Antropologia Social vem da minha proximidade com o cotidiano de garotos de programa, o qual venho acompanhando há anos (aqui e aqui). Assim, tive as condições ideias para iniciar um trabalho de campo, isto é, uma pesquisa extensiva junto à rede desses rapazes envolvidos com as práticas conhecidas como “programa”. A pandemia e o subsequente isolamento relacionado a ela não conseguiram interromper a pesquisa, mas condicionaram as conversas ao ambiente digital.

Meu objetivo principal ao pesquisar esses garotos e seus programas é não só desconstruir uma série de preconceitos do senso comum, mas também acadêmicos. Se por um lado o senso comum diz muitas vezes de que garotos de programa são pessoas displicentes e pervertidas, ou se deixa levar pelo discurso do luxo ou da higienização dos corpos, por outro lado, dentro do espaço acadêmico, fortemente influenciado pelos estudos de gênero e sexualidade e pela atuação de movimentos sociais, muitas vezes se pressupõe uma série de outras ideias problemáticas.

Uma das pressuposições que me incomoda é a de que necessariamente a atividade de realizar programas deve ser prontamente entendida como trabalho. Isso, na minha opinião, atrapalha, justamente, compreensão do processo mediante o qual uma determinada atividade torna-se profissional. Isso equivale a dizer que a “profissionalização” do programa depende não apenas da vontade de uma ou duas pessoas, mas está sim relacionada ao investimento discursivo de diversos atores e atrizes, como os movimentos sociais, dispositivos jurídicos, os próprios garotos de programa, os clientes e os processos institucionalizados relacionados ao moderno mercado do sexo informatizado.

Então, por um lado, alguns movimentos sociais reivindicam que garotas e garotos de programa são trabalhadoras/es. Desse modo, alinhados a coletivos de todo o mundo, pleiteiam direitos trabalhistas e civis para essas pessoas. Às vezes essas reivindicações implicam em deslocamentos e inclusões dentro de esferas institucionais, burocráticas e jurídicas, tal é o caso do cadastro concernente às/aos “profissionais do sexo” na Classificação Brasileira de Ocupações (que é uma norma que define para diversos órgãos governamentais quais são as ocupações existentes no Brasil).

Os próprios websites em que alguns dos meus interlocutores de pesquisa anunciam para se engajar em programas obedecem a uma lógica de estilização da prática a partir de índices de profissionalidade (por exemplo, expondo imagética e textualmente quais são as contrapartidas do contrato, qual é o valor por hora para a experiência etc.). Alguns garotos se sentem confortáveis para praticar os programas dentro desses referenciais relacionados ao trabalho.

Todavia, há um conjunto de processos que concorre com esses quando estamos falando de programas (aquilo que os garotos de programa efetivamente fazem). Isso porque frequentemente a assunção como “trabalho” supõe uma identificação muito forte com a categoria “garoto de programa”, o trabalhador do sexo, que muitas vezes é vista socialmente de forma estigmatizada, inclusive, e isso pode ser notado no trabalho de campo, pelos próprios garotos.

Assim, é comum que alguns dos meus informantes não atribuam centralidade aos programas em aspectos relacionados ao estilo de vida, conforto e renda. Isso porque carregam consigo referenciais culturais e morais que definem o programa sempre como uma prática que está no limiar da legalidade, daquilo que é socialmente considerado saudável e correto. Assim, alguns deles só assumem a categoria “garoto de programa” (e seus sinônimos, como “boy”) nas instâncias de negociação (espaços de “pegação” e de “fazer ponto”, aplicativos de encontros, websites voltados para isso, saunas de “boy” etc.).

Os clientes também — algo que se nota — por vezes revestem a relação com os garotos de noções relacionadas ao imaginário amizade ao invés do trabalho. Seguindo o raciocínio dos garotos que me falaram sobre isso, se você fala que o garoto é seu amigo, isso talvez envolva, para o cliente, o pensamento de que ele está fazendo um agrado, mais do que propriamente contratando um profissional — diferentes regimes de (in)formalidades. Isso pode ser decisivo para o cliente no aproveitamento da situação que é o programa, já que muitos deles não gostam de admitir que estão tendo relações sexuais e afetivas com alguém em troca de dinheiro.

Algo que talvez esteja em jogo aí é o fato de que quanto mais a relação engendrada pelo programa está próxima do polo-trabalho, mais ela é regida em termos de convenções atreladas ao processo de profissionalização. O jogo erótico embutido na negociação, e toda sorte de convenções relacionadas à dignidade moral, corporal e sexual são evocadas (e testadas) de forma mais ou menos explícitas em cada situação-programa, entendendo o programa como a prática de cunho marcadamente erótico e/ou afetivo e/ou sexual, cujo motor principal é a troca de dinheiro e bens, e que acontece de maneira minimamente pré-acordada por pelo menos duas pessoas.

Dessa forma, independentemente do grau de concordância quanto às discussões a respeito de “trabalho sexual”, é necessário como procedimento antropológico interpretar como os garotos de programa são socialmente entendidos em termos de convenções ligadas ao labor. E mais, como um garoto de programa torna-se um. Metodologicamente, eu prefiro chegar a essa compreensão a partir da atuação prática dos garotos, isto é, pelo programa. É a partir da sucessão de programas que um rapaz torna-se mais ou menos garoto, ou que um garoto torna-se mais ou menos profissional, ocasional ou amigo.

O programa é também a situação em que a sexualidade é continuamente engendrada em termos de orientação e identidade sexual. Minha área de atuação na Antropologia Social é nos estudos de gênero e sexualidade em contextos urbanos já há alguns anos. Meu mestrado foi sobre “pegação”, isto é, um conjunto de práticas associativas, marcadas por relações de afeto, erotismo, sexo e/ou desejo, que acontecem sobretudo entre homens — que provavelmente ainda não se conhecem — em espaços que atendem a determinados índices territoriais e de interação social, historicamente constituídos como tais. Meu objeto de estudo principal naquele momento foi o parque Ibirapuera (apresento de maneira bem resumida a minha pesquisa aqui). No trabalho de campo com as pessoas-em-situação-de-interação-na-pegação (que eu chamei de os pegandos), ficou claro para mim como as convenções de orientação sexual (gay, hétero, bi etc.) eram testadas e retestadas a partir, por um lado, do jogo erótico e, por outro, dos fatores de tensionamento identitário e desejoso proporcionados pelo expediente da pegação — que alguns resumiriam, erradamente, à ideia de “anonimato”. Tal como a pegação, o programa é uma instância de produção performática do gênero e das convenções a ele relacionado, uma vez que tais convenções são centrais no condicionamento das trocas desejosas.

Brad Davis em “Querelle”, Rainer Werner Fassbinder, 1982.

Enfim, pesquisas de Antropologia Social frequentemente se dedicam a temas polêmicos e espinhosos como esse. Talvez o leitor ou a leitora estejam se perguntando: Por que é importante pesquisar isso? O que ganha a sociedade com esse tipo de pesquisa?

As investigações etnográficas e antropológicas são importantes no desenvolvimento de uma compreensão crítica sobre a diversidade, no sentido de entender certas dinâmicas socialmente desprezadas para garantir que tenhamos uma bons referenciais e compreensão a respeito de como seres humanos atuam socialmente em sua diversidade — o que nos educa, diminui nossos preconceitos e nos faz zelar pela dignidade de todos.

Além desse ponto, é necessário lembrar que garotos e garotas de programa vivem à margem de convenções trabalhistas e, frequentemente, se encontram por questões contingentes, à margem da legalidade. Dificilmente os garotos são considerados em políticas públicas, o que tem bastante a ver com a liminaridade simbólica das suas práticas, que por sua vez relaciona-se com a economia discursiva do sigilo, fundamental para a efetivação da boa parte dos programas.

Essa condição sociocultural se articula aos desafios relacionados à garantia de dignidade dos garotos.

Agrupados sob a categoria da saúde pública HSH (homens-que-fazem-sexo-com-homens), é difícil monitorar as práticas sexuais dos boys, o que torna desafiadora a atuação de instituições públicas relacionada à prevenção de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs)

Ademais, a pandemia, segundo relatam interlocutores de pesquisa, testou (e continua testando) de maneira brutal e impiedosa a capacidade de sobrevivência dos mesmos (considerando o padrão de vida de cada um), já que não há mecanismos legais que podem efetivamente garantir a saúde financeira dos mesmos. O isolamento social é um empecílio fatal à prática do programa.

Deixo aqui, enfim, esta reflexão baseada em conversas com vários garotos de programa que vivem em São Paulo. Terei cumprido meu objetivo aqui se consegui apresentar e promover um debate sobre como as convenções de profissionalização, operada por diversos atores e engendradas por situações (sendo a mais elucidativa, para mim, a do programa), estão relacionadas à construção social do garoto como — mais ou menos — trabalhador sexual.

Este texto foi gestado no âmbito da disciplina Etnografia e autoria na segunda metade de 2020, supervisionada por

e Pedro Lopes no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP. Agradeço a , Raul de Paiva Santos e Lumena Cristina de Assunção Cortez pela leitura generosa. No doutorado sou orientado pela incrível professora Silvana Nascimento.

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_erinhoos
Revista Subjetiva

_antropólogo, barista informal, errante incorrigível, cantor de karaokê, sérião nas horas vagas