Estratégias financeiras para vidas em transição

Alessandra Nahra
Revista Subjetiva
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8 min readOct 4, 2018
Feira da Reforma Agrária, maio 2018. Foto Alessandra Nahra

Fui em um workshop para ouvir ideias de planejamento financeiro para uma vida simples. E me decepcionei. Não por culpa dos professores, que fique claro — eles trouxeram ótimas ideias para quem precisa começar a se organizar financeiramente ou procura entender mais sobre como investir. A responsabilidade pela decepção foi minha mesmo: não li direito a descrição do que seria abordado, e tinha muitas expectativas. Eu queria ouvir sobre nossa relação com dinheiro dentro de um contexto de vidas em transição (ou seja, ideias cósmicas e hippies). Daí me dei conta de que dificilmente eu ia ouvir algo assim em um workshop de planejamento financeiro normal. Cujos professores são economistas (ainda que do tipo desconstruído: ambos pediram demissão de instituições financeiras para viajar e viver de um jeito mais simples). Pensei que talvez só haja uma pessoa que eu conheço que falaria sobre o que eu queria ouvir: eu.

Então aqui segue a listinha do que seria abordado no meu workshop de estratégia financeira para uma vida simples.

Primeiro, vamos definir vida simples. Na real a minha ideia de vida simples não está muito longe da ideia dos organizadores do workshop. Eles falaram sobre gastar menos, consumir menos, trocar um carrão por um carro simples ou carro nenhum (até passaram uma ferramenta interessante que mostra quanto dinheiro o carro consome ao longo dos anos), alugar ao invés de financiar um imóvel, etc. Vida simples, financeiramente falando, pra mim é por aí: ter menos coisas, menos objetos, menos contas para pagar, nenhum crediário, nenhuma dívida, nenhum cheque especial, nada cuja manutenção seja cara; nada que seja comprometido caso eu passe um perrengue e fique dura por uns tempos. Nada que me obrigue a manter um emprego de que não gosto pra sustentar essa coisa.

Então vamos falar do contexto, que eu entendo como transição. A gente está passando por uma transição social, e muita gente está fazendo transições pessoais. Deixando empregos e cidades, se mudando, mudando a área de trabalho, mudando a forma de trabalhar. Não dá pra ficar falando de finanças pessoais com base apenas em modelos antigos: acumulação de dinheiro e investimentos em produtos bancários baseados em juros. Se eu quero que o capitalismo exploda, como vou ficar dependendo de bancos?

Partindo desse conceito de vida simples em um cenário de transição, como vamos nos sustentar?

  • Precisar de menos dinheiro. Começa por aí. Isso não quer dizer abrir mão de dinheiro, ou de experiências boas que o dinheiro pode proporcionar. Viajar, por exemplo, é ótimo, e eu quero continuar viajando enquanto houver combustível pro avião — mas eu posso viajar de maneira mais frugal (tenho conhecido gente que viaja de carona, dormindo em qualquer lugar, comendo o que encontra — mas não tô dizendo que é o meu caso). Precisar de menos dinheiro envolve combater velhas ideias — como a, tão entranhada em alguns, de que as experiências têm que ser sempre mediadas pelo dinheiro. E mudar hábitos. Minhas amigas, ao saberem que pretendo passar alguns meses viajando, logo perguntam: mas como tu vais ganhar dinheiro? Primeiro que vou precisar de menos, visitando lugares nos quais eu posso trabalhar em troca de hospedagem e comida. Depois, a prioridade não é o dinheiro. Tem que inverter: foca na vida que tu queres ter, o sustento é consequência.

Precisar de menos dinheiro envolve, claro, estratégias para efetivamente precisar de menos dinheiro. Como:

  • Reutilizar e resignificar coisas. Ao invés de sair comprando, pensar em como podemos aumentar a vida útil dos objetos e reaproveitar objetos para novas funções. Um balde pode virar um vaso. Um lençol pode virar uma cortina. Uma porta apoiada em dois cavaletes vira uma mesa.
  • Observar e interagir: o que existe em abundância perto de mim? Aqui a gente usa um conceito da permacultura. Vamos dar uma olhada ao redor e ver o que existe em abundância e está sobrando, sendo descartado, ou pouco valorizado. E pensar em como podemos reaproveitar essas coisas. Um exemplo da horta: caixotes de feira que iriam para o lixo viram canteiros, palha e folhas secas das árvores da rua viram cobertura de canteiro e compostagem.
  • Trocar. Ao invés de comprar uma coisa, troque com alguém. Uma calça por um casaco, rúcula por couve, um liquidificador por uma furadeira. Alguma coisa que você faz — sabonete — por algo que outra pessoa faz — desodorante.
  • Compartilhar. Já pensou em pegar emprestado em vez de comprar? Ou dividir a compra de uma coisa com um parente ou amigo ou vizinho? Vários objetos que temos passam longas temporadas ociosos. Aqui em casa, a máquina de costura é um exemplo. Se eu só uso uma vez por ano, faz sentido eu manter? Eu posso doar para alguém que usa mais, me livro de um objeto juntando poeira, e pego emprestado dessa pessoa (ou de outra) quando eu for remendar os lençóis furados pelos gatos. Nesse item, não são mais novidade os serviços que facilitam o compartilhamento de hospedagem (Airbnb) e de carros/caronas (Blabla Car e Zazcar). E aqui entra também morar junto com outras pessoas, dividir o aluguel (o que também não é nenhuma novidade, mas a gente associa a uma coisa da juventude, de quando a gente ganhava pouco ou ainda estava na faculdade. Ou uma contingência de famílias pobres, em cujas casas se amontoam pais, avós, filhos, primos, tios. Tá aí mais um exemplo da necessidade de combater velhas ideias e mudar hábitos).
  • Comprar usado. É uma forma de resignificar. Uma coisa usada já está rodando por aí, e não gastando mais recursos novos para ser produzida. Comprar usado estende a vida útil da coisa, que agora será usada por outra pessoa. E uma coisa usada custa mais barato.
  • Fazer. Cozinhar sua comida ao invés de comer fora, costurar uma roupa, fazer um canteiro com madeiras encontradas em caçambas. Fazer costuma ser mais barato do que comprar ponto. Descubra quais são e use suas habilidades.
  • Não compre, plante! Faça uma pequena hortinha em casa, nem que seja pra colher alguns temperinhos (aqui tem dicas de como começar uma horta em qualquer lugar). Com o tempo você vai conseguir suas próprias sementes (de plantas que você plantou, ou trocando) e seu próprio solo, através da compostagem. Falando em comida de graça, também tem as PANC (Plantas Comestíveis Não Convencionais) — que abundam pelas calçadas das cidades e ninguém presta atenção (um dia vi Ernst Gotsch pegar umas folhas de caruru e comer assim mesmo, sem nem lavar, e dizer: “Carrruru é sagrrrrrrado, mas o humano não gosta de comer mato”). E dale comida não mediada pelo consumo.
  • Economia da dádiva. Economia da dádiva, como eu entendo, é doar e receber. De amigos, parentes, desconhecidos, anônimos, da mãe Terra. Isso acontece quando eu dôo dinheiro para a amiga que faz mutirão de castração de animais da favela, ou para projetos (de gente que eu nem conheço) no Catarse, por exemplo. Ou quando eu ganho serviços das pessoas para as quais dei oficinas ou fiz hortas. Ou quando o pessoal vai na feira fazer a xepa e traz pra casa comida sem ter pago por ela. Economia da dádiva é, de certa maneira, dar sem esperar nada em troca e ficar atento a oportunidades de receber. Já falei um pouco sobre isso aqui. Dar, tanto ou mais que receber, e aprender a pedir também.

As experiências não precisam ser sempre mediadas pelo dinheiro.

O sustento de uma vida simples em cenário de transição envolve, claro, novas maneiras de trabalhar:

  • Trabalho não remunerado também é trabalho. É aquele que a gente faz e não vai receber diretamente por ele. Tá cheio de serviço a ser feito no mundo, e tem muita coisa que não é remunerada (nenhuma empresa tá contratando pra fazer mutirão de horta na periferia, ou construir casa pra sem teto). Tem também o serviço de casa: lavar roupa, catar cocô de bicho, cozinhar. E o serviço de cuidar dos outros, humanos e não humanos, e das plantas. No meu entender, todo trabalho é trabalho. Não importa se eu vá receber um dinheiro por ele no fim do dia (ou do mês) ou se eu não vá receber isso tão diretamente assim (toma lá, dá cá). Eu não separo mais trabalho remunerado de não remunerado. Eu faço o que tem pra fazer. Tem a ver com a economia da dádiva. E com colocar seus dons e talentos à serviço do universo.
  • Redirecionamento de recursos. É tirar de onde tem em excesso e direcionar para onde está em falta. Eu trabalho assim. Quando faço serviços para clientes que ricos ou que podem pagar, cobro o justo, mas cobro bem. Porque esse recurso vai patrocinar também o meu trabalho onde não tem remuneração, ou pra quem não pode pagar, ou as doações.
  • Gerenciamento de receita de quem é freela. Tem uma coisa que eu recomendo bastante: diversificar as fontes de receita. Fazer várias coisas. Não é por que tu é jornalista que tu só vai fazer freela de texto. Tu certamente sabes fazer mais coisas na vida. Descobre o que tu sabes, e gosta, e sai fazendo. Oferece teu serviço pro mundo. Passear com cachorro, cuidar de jardim, fazer revisão de texto, vender frutas, fazer bolo, escrever declarações, tem tanta coisa que o humano pode fazer. De maneira que ali na tua planilha mensal, na coluna de receitas, tu vais ter várias entradas, ao invés de apenas uma.

Conceitos para começar a pensar nas finanças da transição:

  • Decrescimento. Teve um moço que perguntou, no fim da aula, se tudo que a gente tinha visto ali estava baseado em um crescimento econômico infinito. A resposta foi que sim. Só que os recursos naturais são finitos. Já tem teóricos falando em decrescimento: desassociar a ideia de desenvolvimento a de crescimento econômico. Penso que a economia da transição, ou nova economia, ou sei lá como chamar, já trabalha com esse conceito. A gente tá fazendo a transição exatamente por causa disso: porque vimos que do jeito que está não dá mais.
  • Viver de forma mais crítica e pensar criticamente na vida financeira. Isso eu ouvi de uma colega, nos comentários finais do workshop. E adorei. Sim, a gente precisa viver de forma mais crítica e pensar criticamente sobre a forma que a gente vive, em todos os aspectos.
  • O suficiente abundante. Vivo falando isso. Que todo o momento contém o que o momento requer. Não precisa de muito, e não precisa acumular, guardar. O pouquinho tá ótimo, é o suficiente. E o suficiente é abundante. Isso pode ser uma heresia quando se pensa em "segurança financeira", que prega que a gente tem que ter guardado/aplicado x vezes o nosso custo mensal, caaaaaso alguma coisa aconteça (essa "alguma coisa", na ideia do planejamento financeiro, é ficar desempregado — mas gente, nóis já não temo emprego mais). Tenho uma mestra que gerencia um abrigo com dezenas de animais resgatados e ela me disse que às vezes a conta tá com zero reais e no dia de pagar o boleto aparece o dinheiro. Eu sei, esse item aqui é nível hard. É o planejamento financeiro baseado no não ter medo — e quando tu não tem medo, pra que planejamento?
    (Bah, duvido um economista dar essa sugestão ;)

"Abundância financeira não quer dizer ter muito. Mas sim ter exatamente o que é necessário, no momento necessário. Não há maior desperdício de energia do que acumular pelo propósito da acumulação. Ser rico para ser rico é uma doença nascida do medo e um comportamento desprovido de fé"— Michael Brown, Presence Process.

A gente precisa de dinheiro ainda? Sim, claro que precisa. Mas não precisa de tanto. E dinheiro não é o único jeito. Se não tiver ele tem outros.

Gosto de hortas, bichos, dança, sol, mar, mato, gente pelada, comida-planta, amor, desejo, entusiasmo, gratidão. Ando pelo mundo vivendo isso e estudando/praticando agroecologia, agricultura sintrópica, permacultura e agricultura urbana. Escrevo na Herbívora, no coletivo de mídia independente Por Que Não? e aqui no Medium. Minha vida é um livro aberto no Instagram e também arrisco uns vídeos toscos no HerbívoraTube. Dou oficinas pra quem quer começar a plantar em casa e compostar. Cozinho, danço e dou cada abraço… ❤

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Alessandra Nahra
Revista Subjetiva

Escrevo, planto, estudo, viajo. Falo com bichos, abraço árvores, e vice-versa.