Estrela

Isa Silveira
Revista Subjetiva
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19 min readMar 12, 2020
Divulgação

Eram nove horas e trinta e dois minutos de uma quinta-feira quando o celular de Daniel vibrou com uma nova notificação. O rapaz largou a caneta com a qual resolvia um exercício de matemática e o desbloqueou o aparelho. Se tratava de uma mensagem de seu melhor amigo: “Você vai comigo na festa, né?”

Soltou um suspiro aborrecido; já tinham conversado sobre isso antes e Micael sabia bem qual era a sua resposta. Digitou: “Não, cara” e voltou a estudar. Não demorou muito para mais uma mensagem chegar: “Ah, cara, qual é? Vai ser legal!”, mas dessa vez Daniel decidiu ignorar.

A tal festa seria num clube local e era obrigatório ir de máscara — a regra era não retirá-la até que o relógio marcasse meia-noite. Seria naquele fim de semana, para o qual Daniel já havia programado uma maratona intensa de estudos para o vestibular que se aproximava, e até tentara convencer Micael de fazer o mesmo. Além disso, não lhe agradava a ideia de sair do conforto de casa para ir a um lugar cheio de pessoas desconhecidas.

Só que Micael não desistia: “Até já comprei uma máscara maneira pra você! Bora, mano!”. Quando chegou ao limite de começar a enviar centenas de “Bora”, um seguido do outro sem o mínimo intervalo de tempo, Daniel respondeu: “Se eu ficar lá por uma hora, promete que para de me encher com essas coisas?”, ao que o amigo respondeu prontamente “Claro!”. Duvidou, mas pelo menos encerrou o assunto. Já arrependido, desligou o celular e voltou a focar nos estudos.

.

Daniel chegou ao clube na hora combinada. Enquanto esperava pelo amigo, viu várias pessoas entrando; não sabia dizer se eram conhecidas ou não, pois todas estavam usando máscaras muito parecidas entre si. Era como ver a mesma pessoa passando de novo e de novo. Não bastasse isso, a maioria se virava para o rapaz de face descoberta, como se ele fosse o estranho ali. Em certo momento, Daniel optou por baixar a cabeça e manter os olhos fixos no chão.

— Foi mal pelo atraso!

Não fosse a voz muito familiar, não teria reconhecido Micael, pois este também trajava uma máscara similar às outras. Segurava, ainda, uma máscara do mesmo modelo nas mãos — a que comprara para seu convidado — , o que fez Daniel sentir um misto de alívio e desconforto.

— Vai, veste logo pra gente entrar. Até que enfim chegou o dia!

Daniel vestiu seu disfarce e, ao pisar no salão, olhou no relógio de pulso: marcava nove horas da noite. Às dez em ponto, poderia voltar para casa e fazer o que estava acostumado a fazer.

Dentro do salão, uma música eletrônica genérica tocava, durante a qual vários adolescentes dançavam praticamente com os mesmos movimentos. O rapaz foi puxado para a pista e precisou passar pelo constrangimento de assistir o amigo exibindo passos tão originais quanto os demais e, como se isso já não fosse ruim o bastante, ainda tentando convencê-lo a fazer o mesmo.

Respirou fundo. Só precisava aguentar por mais quarenta minutos.

Em algum momento após torturantes minutos, no meio de toda aquela gente, os olhos de Daniel, mesmo com o empecilho da máscara, encontraram um caminho pela multidão para repousarem sobre uma pessoa — talvez a única — que usava uma máscara diferente de qualquer um ali. Era difícil ter certeza, mas pensou que ele, ou ela, estava devolvendo o olhar. Porém, logo rejeitou esse pensamento; por que, ou melhor, como estaria chamando a atenção de alguém se não passava de mais um ali? Mesmo se resignando com isso, não pôde deixar de encarar a pessoa misteriosa.

Enfim, viu-a dar as costas, e percebeu que tinha cabelos loiros presos em um rabo de cavalo alto. Isso, combinado com seu jeito de andar, aumentou a possibilidade de ser uma garota. Daniel não sabia ao certo o que o estava impelindo, talvez fosse curiosidade, talvez fosse a vontade muito justificável de sair da pista de dança, ou talvez até mesmo uma mistura dos dois, mas, quando se deu por si, já estava indo atrás dela.

Os dois acabaram chegando na área externa do clube, onde não tinha mais ninguém em volta, o que, para o garoto, foi ainda melhor do que respirar ar fresco.

— Quem é você? — Indagou a pessoa de máscara diferente.

“Com essa voz tem que ser uma garota” concluiu Daniel, por fim. Pensou em uma desculpa para tê-la seguido, porém, a moça, já virada para ele, cancelou a própria pergunta:

— Se bem que também não podemos falar nossos nomes, né? Nossa, isso sim é chato.

Daniel não sabia dessa regra.

— Podemos nos identificar com nomes fictícios — sugeriu.

Pelo tom de voz da garota, pôde apostar que fez uma careta.

— Não sei o que é pior: não ter uma identidade ou ter uma falsa. — Depois de pensar por um instante, propôs: — E se usarmos a primeira letra de nossos nomes?

— Pode ser. Eu sou D, então.

— E eu sou A. Prazer! O que te traz aqui fora, D?

— Hm… Queria um pouco de ar fresco. Tanta gente aglomerada daquele jeito me sufoca.

— Então por que veio a uma festa?

— Porque meu amigo é muito chato. Acabou me prometendo que não me convidaria mais se eu ficasse aqui por uma hora.

A checou o relógio que tinha no pulso.

— Vai ficar até as dez?

— Isso.

— Sabe que, se ficar até meia noite, vai poder assistir à todas essas máscaras caindo?

— Não sei se me interesso tanto assim por isso.

— Acho bem mais interessante que aquilo ali.

Daniel se virou para a porta dupla de vidro através da qual podia ver os jovens dançando — agora com outra música, mas os mesmos passos. Será que vale mesmo a pena, ou que mudaria alguma coisa?

— Quer se sentar? — A convidou.

Assentiu e foi atrás. Não sabia, e por isso não viu que horas eram, mas foi ali que sua noite começou.

.

Sentados nas cadeiras de frente para a piscina, enquanto D tentava mentalmente adivinhar qual seria o nome da moça, esta mantinha a cabeça erguida para o céu, aparentemente muito menos nervosa por estar sozinha com alguém do sexo oposto. Incomodado com o silêncio, Daniel perguntou, com uma voz tão baixa que duvidou que pudesse ser ouvido:

— E você, o que te trouxe aqui fora?

— As estrelas — respondeu ela, simples e rapidamente. — Eu venho contemplá-las todas as noites, porque sei que, em uma delas, vou achar a minha. Pareço uma louca falando isso, né?

“Um pouco”, Daniel pensou.

— Claro que não — disse. — Mas como vai saber qual a sua? Quero dizer… São todas iguais.

— Não são nada iguais. Se prestar bem atenção, vai ver que cada uma brilha de um jeito único, e também diferem de tamanho. Tem que fazer um pouco de esforço pra conseguir ver. Tenta um pouco.

O jovem estudante olhou para o céu. Embora as muitas estrelas e a lua formasse um cenário lindo, não conseguiu entender o que A queria dizer. Ainda assim, para não causar má impressão, tentou disfarçar.

— Ah! — Soltou, querendo soar admirado.

A deu risada.

— Não precisa fingir também.

— Não… Não tô fingindo.

— Claro que tá; se tivesse entendido de verdade, sua reação seria bem diferente.

Pela primeira vez Daniel ficou contente por estar de máscara, pois ela pôde esconder o quanto seu rosto ficara vermelho.

— Desculpe.

— Tudo bem, não é culpa sua. Algumas coisas a gente só enxerga na hora certa mesmo.

A voltou a olhar para o céu e continuou a falar:

— Eu também não costumo ir em festas, mas não queria ficar em casa essa noite. Não tem nenhum problema lá — apressou-se em completar — , é só que… Não tem nada de novo para mostrar ou conhecer lá dentro enquanto eu não tiver um novo horizonte. Então vi meus amigos falando dessa festa e pensei que seria um bom jeito de ganhar uma visão diferente das coisas.

A falava com uma simplicidade e pureza tão grandes que D se sentia admirado quase na mesma proporção em que ficava constrangido; parecia ser muito pequeno ao lado dela. Perto daquela garota, era como se suas notas e títulos não significassem muita coisa. Mesmo assim, o que menos queria era sair dali.

— Onde aprendeu isso sobre as estrelas? — Quis saber.

— Minha vó materna me ensinou sobre tudo o que tem importância nesse mundo, e sempre dizia que, de todas, essa era a lição mais importante. Ainda falava que não se pode dizer que ama algo sem entender isso.

— Ela conseguiu encontrar a própria estrela?

— Nunca me disse, mas acho que sim.

— Você acha que uma dessas estrelas possa ser ela?

A começou a rir, deixando D preocupado por talvez ter dito algo inadequado ou por ter interpretado mal que sua avó havia falecido. Já estava prestes a pedir desculpas quando ela disse, com graça:

— Vovó te daria uma tapa se ouvisse isso.

— O… O quê?

A virou o rosto para o rapaz. Começou a dizer algo, porém se interrompeu e ficou a encará-lo. Daniel respondeu o olhar até se sentir desconfortável.

— O que foi?

— Sua máscara…

— O que tem?

— É exatamente igual às outras.

— Ah. Valeu.

D se virou de volta para frente, e a garota riu mais uma vez.

— Desculpe, não era pra ter saído assim. Queria dizer que é o mesmo modelo que a maioria tá usando ali dentro, só que também tem algumas marcas sutis. Tipo, aqui na bochecha — ela tocou a máscara do jovem, o suficiente para fazer seu coração bater mais rápido — tem um arranhando. Aqui — tocou na testa, e Daniel ficou preocupado com o quanto seu peito tremeu — tem uma manchinha que mal dá pra ver sem chegar perto.

— Bem… Talvez as que o pessoal está usando lá dentro também tenham marcas desse tipo.

A finalmente se afastou — seria muito rude soltar um suspiro de alívio? — e olhou para a porta que dava ao salão. Parecia pensar de verdade naquilo. Daniel pensou em completar o que queria dizer com “Sabe, porque às vezes ficam fora da embalagem nas lojas”, entretanto, acabou optando por:

— E a sua é linda. E diferente.

Enquanto A retornava a atenção para o garoto e inclinava a cabeça levemente para o lado, ele pensava no quão ruim fora sua frase.

— Obrigada — ela respondeu, e foi surpreendente o quanto soou sincera.

D ficou feliz, só que não fazia ideia do que dizer em seguida, e por isso sentiu um alívio quando o celular vibrou em seu bolso. Pediu licença e o desbloqueou para conferir a mensagem de Micael: “Já foi embora?”

Já eram dez horas e cinco minutos. Como foi que o tempo passou tão rápido?

— Ah… Deu uma hora, né? Você já vai?

O rapaz olhou para ela e depois para a multidão na parte interna do clube. Mais uma vez se perguntou se faria alguma diferença ver o momento em que suas máscaras marcadas caíssem no chão, o que sentiria ou se valeria a pena esperar até meia-noite. Depois, olhou novamente para A, e teve certeza de que queria conhecê-la sem a máscara. Tentou não pensar muito para decidir.

— Não, vou ficar.

Talvez fosse apenas seu pequeno e bobo coração querendo iludi-lo, mas teve a impressão de que ela ficou realmente contente. Respondeu Micael avisando onde estava e que ficaria, e recebeu de volta vários emojis de comemoração.

— Já que vamos ficar aqui mais um tempo, não é bom ficarmos sentados direto. — A garota se pôs de pé. — O que acha de darmos uma volta?

— Claro.

Antes de irem, A segurou sua mão levemente, fazendo Daniel sentir que poderia cair no chão, e olhou para seu rosto. Sua voz saiu muito suave:

— Vovó te daria um tapa — retomou — , porque não gostava nada do clichê de comparar as estrelas com os mortos; ela acreditava que as estrelas estão aqui para os vivos.

— Ah, certo. Desculpe.

Ela o soltou.

— Problema nenhum!

Quando A se virou, ele achou ter visto — talvez só estivesse louco mesmo — um sorriso crescendo por baixo da máscara.

.

— E você, D?

Os dois passavam ao lado da quadra de areia quando a pergunta surgiu.

— Eu o quê?

— Me conta sobre você também. Já falei sobre mim, quero te conhecer agora.

Daniel ficou perdido; se falasse do seu desempenho escolar, A podia achar que estava se vangloriando, mas também não queria que pensasse que não tinha nada para contar.

— Sobre o que você gostaria de saber?

— Hum… Ah, já sei: você tem algum sonho?

Era difícil dizer. O pai de Daniel era médico, então sempre achou natural que também o fosse; pensava assim desde pequeno, quando as professoras começaram a perguntar para as crianças o que queriam ser quando crescessem. D não entendia muito bem o que as pessoas queriam dizer quando falavam sobre sonhos, porque os dele não iam além do sentido mais literal apresentado pelo dicionário. Um dos professores mais amargurados que já teve uma vez disse para a turma, em um dia em que claramente fora trabalhar de ressaca: “Segundo o dicionário, sonhos, nesse sentido que vocês colocam pra falar bonito, são ideias quiméricas. Você sabem o que é uma coisa quimérica? É uma coisa utópica. Vocês sabem o que é utopia?” e por aí continuou até a aula acabar. Daniel se lembrava de ter visto uma garota chorando ao sair da sala nesse dia.

— Acho que não.

— É sério?

— É. Quero dizer, o que é exatamente um sonho? Porque o dicionário diz que…

— É uma ideia quimérica — A o pegou de surpresa, ainda mais pelo tom de deboche que empregou. — Aham, uau, incrível. A pessoa que colocou essa definição lá devia ser muito boa para fazer companhia em festas.

— Você por acaso lê dicionários?

— Não, só tive um professor horrível.

D parou por um momento.

— O que foi? — Perguntou A.

— Nada… Mas então, como você definiria “sonho”?

— Simples: é o motivo pelo qual você vive. Grande ou pequeno, você acorda todos os dias para alcançar alguma coisa. Até quando você não sabe qual o seu sonho, se ainda está vivo, acordando todos os dias, é porque uma parte sua está procurando essa motivação. E então, quando a pessoa diz que não tem nenhum sonho, está basicamente dizendo que não tem vida.

— Foi a sua vó quem te ensinou isso também?

— É claro.

— Bem, se for isso, acho que tenho um sonho, sim.

— É? E qual é?

— Ser médico.

— Que legal! E por que você quer ser médico?

— Meu pai também é, então eu vou assumir o legado que ele tá me deixando.

— Ah. — A animação da garota desapareceu. — Essa foi a explicação mais morta que já ouvi sobre esse assunto. D, sonho não é isso.

— Mas é por esse curso que eu acordo todos os dias…

— Ok, mas pra realmente dizer que está fazendo isso por um sonho, você também deveria ser capaz de dizer que quer alcançar esse objetivo por você, e não pelo seu pai!

A estava claramente nervosa. Daniel não esperava que ela fosse ficar tão indignada com algo assim, então ficou completamente sem reação.

— … Desculpa, sei que não é da minha conta — A acabou dizendo. — É que eu realmente acho que você deveria ter um objetivo por você, e não por alguma outra pessoa, por mais que seja seu pai.

D ia falar que estava tudo bem, mas se sentia tão envergonhado que achou melhor ficar quieto e esperar o constrangimento passar e continuou andando ao lado da garota. Dentro do salão, uma outra música começou, tão parecida com a anterior que só dava para saber que era uma diferente por causa da pausa entre uma e outra.

De repente, A parou.

— Tive uma ideia.

— Qual é?

— Tem alguma coisa que você sempre quis fazer, mas nunca teve coragem?

— Várias.

— Então o que acha de aproveitarmos que estamos de máscaras e fazer algumas delas agora?

— Achei que não quisesse assumir uma identidade falsa.

— Não estou falando para sermos quem não somos. A ideia é que aproveitemos a oportunidade da ocasião para conseguirmos soltar algumas amarras sem medo de julgamento, até porque ninguém vai saber quem nós somos.

— Quando as máscaras caírem, vão saber, sim.

A fez uma pausa, e D, de algum jeito, podia apostar que estava sorrindo.

— Quando as máscaras caírem, será um mundo completamente diferente. Vamos, então?

Que alternativa tinha?

— Vamos, então. Pode começar.

Ela pegou a mão dele e o puxou de volta para o interior da festa. Continuaram avançando pela multidão de pessoas até conseguirem chegar na pista de dança, então A ficou de frente para o rapaz e começou a dançar de um jeito completamente desengonçado. Daniel não conseguiu não rir.

— É sério?

— Sem julgamentos. Me acompanha.

Daniel demorou um pouco para conseguir se soltar daquele jeito, mas a energia da garota o contagiou, e, quando se deu por si, também estava fazendo movimentos sem sentido e se sentia estranhamente bem com isso. Enquanto ria e “dançava”, encarava A pela máscara e tentava responder da forma menos melancólica possível a pergunta que passeava por sua cabeça: será que ela continuaria querendo sua companhia depois que o relógio batesse meia-noite?

A ria descontraidamente, sempre voltada para o rapaz.

Será que havia alguma utilidade em saber disso às dez e meia da noite?

Nos segundos de pausa para trocar de música, A exclamou:

— Sua vez!

E, sem se permitir pensar, D pegou em sua mão e a puxou novamente para o lado de fora, onde começou a correr em volta do casarão, com a menina logo ao seu lado. Gritou para o ar, sua voz sendo abafada pelo som da música e abraçada pelos ventos que tocavam seu rosto. A teve uma crise de riso, mas gritou também.

Quando terminaram de dar a volta, Daniel passou o turno para a companheira de novo, e ela foi logo na direção da maior árvore do jardim. Sem nenhuma dificuldade, escalou-a até um dos galhos fortes em que pôde se sentar.

— Tem vergonha de subir em árvores? — O rapaz perguntou ao chegar ao seu lado.

— Em lugares públicos, sim. Fazia isso direto quando era criança, só que quando fui fazer um dia depois de já ter crescido, as pessoas começaram a me olhar como se fosse uma estranha. — Então, do nada, ela gritou: — Vocês não sabem o que estão perdendo, ok?!

Em qualquer situação normal, Daniel ficaria envergonhado com uma coisa dessas e tentaria esconder o rosto, porém, naquela noite, naquela árvore, com aquela máscara e aquela garota, riu com toda a vontade. Seu ombro se encostava ao de A, e uma voz dentro dele gritava para segurar aquela mão tão perto da sua.

— Certo, sua vez — ela disse. — Que outra atitude socialmente vergonhosa gostaria de fazer agora?

Os dois se olhavam — bem, ao menos o rosto dela estava virado para ele — e D só conseguia pensar nela, e se teria coragem mesmo para chamar uma garota sair ou dar algum tipo de cantada, principalmente porque nenhum dos dois sabia o que havia sob a máscara um do outro. Era estranho, mas Daniel já sentia como se a conhecesse bem, como se o seu rosto verdadeiro não importasse tanto assim.

Mas importava, claro, ele sabia.

Continuava com os olhos fixos na moça, e, como ela também não desviava o rosto, se deixou imaginar que estava pensando na mesma coisa. Só que aí A virou o rosto abruptamente para o céu.

— Tenho um desafio para você.

— Pode falar.

— Até o fim dessa noite terá que achar sua estrela.

Daniel olhou para o céu, e depois de volta para A. Achou que seria impossível, considerando que ela procurava fazia tempo e ainda não havia encontrado, só que nem seria louco de falar algo assim e estragar o momento.

— Aceito se você também aceitar — disse por fim.

— Está bem, eu aceito.

— Então tá.

A tornou a olhar para D.

— Sabe o que é estranho? Eu não faço ideia de quem você é, mas ainda assim sinto como se soubesse com muita clareza.

Daniel quis dizer que sentia o mesmo, que não parava de pensar naquilo, mas a surpresa foi tanta que não conseguiu reagir, e então — por sorte ou puro azar — alguém lá de dentro gritou para que descessem da árvore e a comunicação por olhares escondidos entre os dois foi rompida.

O relógio do celular de Daniel denunciava que já eram onze da noite, e mais uma vez ficou assustado com o quanto o tempo estava correndo naquela noite. Não queria que aquele momento com A chegasse ao fim.

— Bem, e agora? — Ela perguntou.

O rapaz guardou o celular de volta no bolso da calça.

— E você, qual o seu sonho? — Perguntou para a garota.

A ficou em silêncio por um breve instante, e então admitiu:

— Não sei.

— Sério?

— Mas… Eu sei o que eu não quero. Acho que já é um passo importante. — Ela se virou para ele. — Por que tanta surpresa?

— Por nada. É que eu pensei que você tivesse um, depois de ter feito um discurso sobre isso.

O arrependimento o estrangulou assim que as palavras saíram. Não fora sua intenção falar daquele jeito, mas até mesmo ele conseguiu notar o tom errado com que falou e ficou evidente, pelo passo para trás que A deu, que para a menina também não passou despercebido.

— Sem julgamentos, D.

— Desculpa! Não foi isso que quis dizer…

— Não, tudo bem. Também fui um pouco dura com você antes. — Depois de mais um breve silêncio, falou: — É importante saber para onde você não quer ir, D. Caminhos certos só se abrem quando os errados são fechados.

— Sua vó te ensinou isso também?

— Não. Aprendi essa noite.

D ficou na dúvida se aquele era um comentário positivo ou negativo, até olhar com mais atenção para a máscara dela e ter mais uma vez a estranha certeza de que A sorria por baixo da camada de plástico. Ficou aliviado, embora confuso.

— Gosta de música? — A questionou.

— Gosto.

Ela se deitou na grama e ele fez mesmo. A sacou o próprio celular, abriu o tocador de músicas e selecionou uma trilha sonora. Daniel não conhecia aquelas músicas, que tinham uma pegada indie, mas gostou da energia delas. Os dois ficaram em silêncio, a música do celular de alguma forma se sobressaindo a música eletrônica do salão, os olhares voltados para o céu. A busca por suas estrelas.

— D?

— Sim?

— Já sentiu vontade de ser outra pessoa?

— Já. Meu pai.

— Ainda sente?

— Não. — Era fácil responder isso depois daquela noite. — E você?

— Queria ser minha avó.

— Ainda quer?

Silêncio.

— Não sei. Antes dessa noite eu diria que sim.

— O que mudou?

— Nada, eu acho.

.

Daniel sonhou com a menina que saíra chorando da sala de aula por culpa do professor amargurado. No sonho, cruzava com ela no corredor ao sair para o intervalo, e se virava para ela, curioso, mas não conseguiu ver seu rosto por ela o tapar com as mãos. Sentiu um ímpeto de ir até a garota e dizer coisas importantes, porém, voltou-se para frente e seguiu seu caminho.

.

— D, acorda!

Despertou assustado; não se lembrava de quando havia adormecido.

— Nós apagamos! — A também estava exaltada. — Faltam cinco minutos para meia noite agora.

— Caramba.

— Bem, nossa noite está acabando e acho que os dois falharam em achar a estrela. — A soltou uma risadinha nervosa. — Tem algo a dizer antes do fim?

Tinha. Tinha tanta coisa. Tinha coisas para dizer que nunca havia sentido vontade de dizer para outra pessoa antes, e sabia que se odiaria se ignorasse isso da mesma forma que ignorou seus instintos que o diziam para falar com aquela menina. Os medos de sempre começaram a fazer seu trabalho maldito quando souberam disso, então Daniel se apressou em abrir a boca antes que não conseguisse mais.

— Você é incrível — soltou, sentindo o rubor na face no mesmo instante. — Acho que a pessoa mais pura que já conheci, e, desculpe se isso soar estranho, mas gostaria muito de te chamar para sair. Não quero que isso termine a meia-noite.

A ficou com o rosto virado para ele — D não sabia se era bom ou ruim o fato da máscara esconder sua reação — e, após alguns instantes calada, se abriu:

— Me desculpe, eu menti pra você. Não tinha nenhuma regra sobre não poder revelar os nomes.

Houve um intervalo ligeiramente maior entre as batidas do coração do jovem garoto. Dentro do salão, a música parou e alguém, com o microfone, anunciou que faltavam três minutos para o grande momento.

De primeira, Daniel sentiu vontade de confrontá-la e questionar o motivo de tal mentira, depois quis perguntar quem, então, era ela, mas foi a terceira opção que escolheu:

— Meu nome é Daniel.

— Eu sei. Meu nome é Anna.

Dois minutos. Não quis perguntar como ela já sabia seu nome.

— Faz anos que eu saio à noite para procurar minha estrela no céu, e só agora me dei conta de que não precisava nem ter procurado. Obrigada, D.

— De nada, mas não sei bem o que fiz pra te ajudar.

— Exatamente! Você não fez nada, e por isso que estou te agradecendo.

Daniel não entendeu, mas sentiu que entendeu — com o tempo que tinham, se deu por satisfeito com isso. Um minuto.

— Quer assistir à queda das máscaras lá de dentro? — Anna o chamou.

— Claro.

Os dois se levantaram, A esticou a mão para D, D segurou a mão de A, e os dois cruzaram a porta de vidro para adentrar o salão de festa.

.

Quando as máscaras caíram, as pessoas se olharam nos olhos. Escaparam exclamações de surpresa ao identificarem conhecidos ou amigos que não tinham notado antes. Gritos de alegria saíram, motivados pela empolgação de estarem livres. Alguns quebraram as máscaras, outros as jogaram fora, enquanto outros continuaram com elas nas mãos, guardando para o caso de precisarem de novo. Após essa explosão de euforia, a música voltou, mas agora não era mais uma música eletrônica genérica, e sim uma com uma letra que falava sobre pessoas felizes dando as mãos, e todos voltaram a dançar, mas não mais de uma única forma, e sim cada um de um jeito diferente.

Daniel sentiu-se estranho sem a máscara, pouco antes de sentir-se livre. Apesar do suor do próprio rosto e do das pessoas em volta, o ar parecia muito mais fresco do que antes.

Então, percebeu que as mãos estavam soltas e que havia perdido Anna na multidão.

Não a procurou.

Não precisava, pensou, por mais que quisesse.

.

— Cara, até que enfim te encontrei! — Micael o alcançou. Ele também estava diferente, mais vivo. — O que achou da festa?

— Bem legal. Valeu por ter me chamado.

Pensou que precisava ouvi-lo se gabando, porém, Micael sorriu com plena pureza.

— Que bom que está feliz, parceiro. Mas acho bom a gente ir, antes que eu exagere na bebida, e porque amanhã você tem que voltar aos estudos.

— É… Não sei. Acho que não vou mais fazer Medicina.

— Oi? Como assim? Não era seu objetivo desde pequeno?

— Era, mas até hoje eu nem sabia quem eu era direito.

Micael, ainda bem, não insistiu em tentar entender a decisão.

— E o que quer fazer, então? — Indagou.

— Não sei. Mas pelo menos sei o que não quero fazer, né?

Seu amigo sorriu. Notou certa admiração ali.

— Caramba, um novo Daniel. O que te mudou tanto assim essa noite?

Uma estrela. Uma garota. Uma máscara. E, principalmente, saber que não tinha sido nada daquilo.

— Nada, eu acho.

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Isa Silveira
Revista Subjetiva

Escritora de contos, fantasia e pensamentos aleatórios. Uso a palavra escrita para em prol de um mundo melhor. Textos em português e inglês.