Eu posso dar aula particular a um adolescente?

Dilemas educacionais em tempos de pânico moral

_erinhoos
Revista Subjetiva
5 min readDec 6, 2017

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Passamos no atual momento por uma sucessão de ataques que vem sendo perpetrada contra o pluralismo, a diversidade e a expressão (num sentido bem amplo) neste país por antagonistas da liberdade (tentei ser parcial, não consegui). Eu tinha a compreensão de que a direita brasileira hegemônica tendia a ser conservadora em termos de valores (Matheus Leone pode me ajudar aqui), mas o que a visibilidade da grande mídia (inclusive desproporcional tendo em vista a relativamente baixa adesão numérica a esses grupelhos) desse fenômeno tem mostrado é na verdade uma classe média (branca) histérica, moralista, politicamente acéfala e mimada. Alguns de seus feitos memoráveis mais recentes, vale lembrar, foram: depredar obras de arte, agredir verbal e fisicamente artistas e militantes de esquerda, incendiar um boneco representando uma filósofa estadunidense no dia de sua conferência em São Paulo!!!!

Essa linhagem política não é lá muito boa com diálogo, mas sim retórica (achei que seria meio constrangedor me aprofundar aqui nos argumentos e palavras de ordem, mesmo porque eles atrapalhariam o nível do debate a que me proponho) — e talvez propaganda — , posto que defende e pressupõe princípios anti-democráticos (a censura e a negação da diversidade são exemplos elucidativos). Eu penso, posso estar equivocado, que, falando de política, esse tipo de ataque é uma contradição com os princípios do próprio liberalismo.

Bom, vamos direto ao ponto?

Jean-Baptiste Debret, Malhação de Judas, 1823.

Eu tenho um aluno, de catorze anos. Ótimo! Ele mora num condomínio que é tipo um castelo num puta bairrão de classe alta aqui de São Paulo, e os pais dele estão me pagando um salário mínimo pra eu dar aulas particulares de reforço em Ciências Humanas. Eu tenho frequentado a casa deles (só até o fim do ano letivo), e fico duas horas — eu, que sou um homem adulto gay — sozinho num quarto com aquele moleque falando sobre Renascimento, sociologia do trabalho, Hanna Arendt, welfare-state, essas coisas inocentes que adoram aparecer no ENEM. Obviamente meu envolvimento com ele se encerra na minha atividade profissional. Agora me fala, bicho! Em tempos de pânico moral, de caça às bruxas, me coloco a seguinte questão: será seguro dar continuidade ao meu trabalho?

Em tempos de Escola Sem Partido, com pais histéricos e professores sendo perseguidos, como vou explicar para o meu aluno os conceitos de “mais-valia”, “força de trabalho”, “alienação” e “ideologia” sem tocar na obra de Karl Marx? Certo, eu não sou um marxista inveterado (embora entenda a importância do marxismo dentro da esquerda), mas obviamente é impossível explicar esses conceitos sem tocar no contexto de exploração que foi viabilizado pelo capitalismo, e que ainda vige de uma forma ou de outra. Porra!, é útil saber essas coisas! As aulas de Sociologia cumprem a função de tirar as pessoas da boçalidade, e garantir que possam exercer a cidadania com os princípios democráticos da nossa sociedade — como deveria ser a função político-pedagógica de todas as demais disciplinas. As aulas de Sociologia educam para a aquisição de um senso crítico e de autonomia. É por isso que as escolas das classes “hegemônicas” (tá aí outro conceito) sempre fizeram questão de dar aulas de Sociologia e Filosofia para seus alunos. Voilá! São as classes “hegemônicas” (como define Antonio Gramsci) que serão as primeiras a saber o que é “hegemonia” e como ela opera nas sociedades industriais. Ademais, não inventei essa grade. No caso, ela parte da demanda da apostila de Sociologia de uma das cem escolas com o melhor desempenho no ENEM do estado de São Paulo!!!!

Em tempos de pânico sexual e “ideologia de gênero” (este conceito que não é propriamente muito… acadêmico), como falar da filosofia de Simone de Beauvoir, ou sobre o protagonismo cada vez maior das mulheres no mundo público, das cotas partidárias por gênero (questão do ENEM deste ano), de Frida Kahlo (questão do ENEM deste ano) ou da violência contra a mulher (redação do ENEM do ano retrasado)? Como introduzir temas que estão na ordem do dia como movimentos sociais e identidade de gênero?

Agora me diz, bicho, se esse rapazote vira e me fala na mesa de jantar, por um motivo qualquer que seja, pros pais, que a luta de classes é uma mancada e o socialismo é mó legal… Ou pior, se eventualmente minha sexualidade vira tema de debate... Se os pais dele forem como esse povo intolerante e lunático que não sabe distinguir performance de arte de pedofilia, eu pelo menos perco o freela. Já cheguei na paranoia de cogitar gravar as aulas!!!! Segurança do trabalho, meu povo!

Agora, naturalmente, não corro o risco de ser capturado e torturado só porque estou lecionando tópicos de Sociologia (?), como acontecia como política de Estado neste mesmo país há quarenta anos atrás (!!!). Contudo, atuar profissionalmente sob o impacto do medo, temendo censura e represália em função de emissão de opiniões, filiação acadêmica e expressão da sexualidade, é um sinal elucidativo e obsceno do inferno moral que tem se instalado no debate público — inferno que temos permitido quando deixamos a grande mídia dar destaque a esses panacas. O medo, como sugere de maneira bastante clara esta temporada atual de American Horror Story, é gasolina para o extremismo. Não interessa aqui os termos do debate público, mas sim a instrumentalização da coerção, por meios ideológicos ou… bélicos. A crise movimenta frequentemente os indivíduos e coletivos rumo a posições oriundas muitas vezes de quinhões radicais do espectro político. Enquanto as pessoas se polarizam no debate cultural entre entusiastas do Johnny Hooker e os bandeirantes da moral e dos bons costumes, contudo, no alto escalão político, os verdadeiros saqueadores da moral do país se valem do abrandamento das massas (anestesiadas com a guerra civil da diversidade cultural), cruzam os braços trás dos escalpos, pousam os pés trocados sobre a escrivaninha, e sorriem para o alto.

Imagem de larga circulação na rede. Expiação da “bruxa” Judith Butler, em frente ao SESC Pompéia em São Paulo (novembro de 2017).

Ainda em tempo: este texto foi escrito bem antes de ser publicado. Agradeço a Marcelo Perilo pelas sugestões. Obviamente confio no meu trabalho e no bom senso das pessoas que estão ao meu redor. Contudo, pedi à Redação Subjetiva que publicasse somente após o período letivo porque… Vai que dá merda, né?

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_erinhoos
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_antropólogo, barista informal, errante incorrigível, cantor de karaokê, sérião nas horas vagas