Fake News: o totalitarismo e o colapso do mundo.
Tem sido recorrente o diagnóstico de que as esquerdas deveriam investir na difusão de “fake news” para, justamente, combater “fake news à direita”, a campanha do Bolsonaro, etc…. Diagnóstico que seria apenas rasteiro se não fosse perigoso: seria, penso, como jogar água em uma panela com óleo fervendo na tentativa de resfriá-la.
E digo tal coisa mirando em um aspecto fundamental do totalitarismo capturado pela primorosa análise de Hannah Arendt, o fato de que ele se apoia numa forma de experiência que a autora denomina solidão (“loneliness” no original ou “verlassenheit” no alemão). Palavra que usa em um sentido distinto do usual. Com efeito, não se trata aqui de “estar sem a companhia dos outros” (isolation) ou no “estar somente na companhia de si mesmo” (solitude), mas na experiência radical de um “colapso do mundo”; na diminuição profunda do vigor comum e humano do mundo.
Mas o que isso significa? Bem, é fundamental notar que mundo, para Arendt (vide A Condição Humana), não é idêntico à Terra (ou à Natureza). A Terra designa o externo e anterior, o dado que, justamente, possibilita e ao mesmo tempo constrange a emergência do mundo. O mundo, por sua vez, seria exclusivamente produto da agência antrópica, justamente, o sentido que damos à Terra, um sentido que, por definição, deve ser compartilhado. Homens em Tempos Sombrios
O mundo não é humano simplesmente por ser feito por seres humanos e nem se torna humano simplesmente porque a voz humana nele ressoa, mas apenas quando se tornou objeto de discurso. Por mais afetados que sejamos pelas coisas do mundo, por mais profundamente que possam nos instigar e estimular, só se tornam humanas para nós quando podemos discuti-las com nossos companheiros.
E é justamente sobre este ponto que incidem as Fake News. Tratar-se-iam de instrumentos extremamente eficazes na dissolução das bases do “mundo comum”, colocando-o em estado de suspeição. "colapso do mundo", justamente. Afinal, trata-se da destruição deste espaço-entre (in-between) que os homens precisam interpor não só entre si, mas também entre eles e a natureza (A Terra), a fim de juntá-los, relacioná-los e distingui-los uns dos outros enquanto seres que agem e falam.
As Fake News incidem sobre a nossa capacidade de, como descreve Arendt, "discutir" as "coisas do mundo", de compartilhá-las em alguma instância. E assim o fazem na medida em que inscrevem um ambiente onde qualquer aspecto da existência pode ser reduzido a um mero artifício ideológico. Mesmo fatos consolidados tornam-se simples construtos: mudanças climáticas, a eficácia das vacinas, a Ditadura Militar, enfim, virtualmente qualquer coisa pode ser reduzida à uma simples manifestação ideológica. Pior a uma manifestação ideológica inimiga. E, como tal, deve ser completamente expurgada do horizonte.
Não há nada de particularmente novo nisso: como mostra Arendt, dissolver as condições de percepção e compreensão do mundo comum (a “mundanidade” e a “realidade”), substituindo a experiência pelo motor da lógica ideológica, minando o senso comum é um movimento típico dos regimes totalitários.
Em A Dignidade da Política Arendt escreveu
A distinção política principal entre o senso comum e a lógica é que o senso comum
pressupõe um mundo comum no qual todos cabemos e onde podemos viver juntos, por possuirmos um sentido que controla e ajusta todos os dados sensoriais estritamente particulares àqueles de todos os outros; ao passo que a lógica, e toda a auto-evidência de que procede o raciocínio lógico, pode reivindicar uma confiabilidade totalmente independente do mundo e da existência de outras pessoas
Com outras palavras, as Fake News contribuem para a dissolução desse senso comum fundamental para a consolidação de um mundo "no qual todos cabemos", promovendo a lógica (afinal, tais notícias funcionam segundo uma lógica interna) em seu lugar, desdobrando em em uma sociedade onde impera aquilo que Arendt chamou de uma “solidão organizada”. Cada qual fechado em seu próprio mundo, um mundo que carece de outrem capaz de desafiá-lo (o mundo sob o signo do um). É justamente dessas massas solitárias que se fazem os regimes totalitários: pela pressão do terror e do medo — e do próprio desejo — são convertidas rapidamente em uma massa homogênea.
Enfim, o que nos importa é que aquilo que Hitler fazia pelo rádio hoje se faz via Whatsapp. Além, que um dos efeitos fundamentais desta operação é a negação de um mundo comum (ou do senso comum) que lhe informa.
Donde me parece óbvio que atuar na promoção deste tipo de tática só favorece a emergência de experiências semelhantes (ainda que disfarçadas de esquerda). Ou seja, que apostar nas Fake News como forma de combater o "fascismo que vem" me parece, ao contrário do que se imagina, uma forma de promovê-lo, pois fomenta as condições que lhe dão sustento. Lembrando ainda que, como bem apontava Arendt, a liberdade do mundo não é somente o fim último da ação política, como nos tempos de crise e revolução, mas o próprio motivo pelo qual os homens convivem.