Falta de cultura pra cuspir na estrutura — Um guia básico para entender o rock’ n’ roll como ato político e não passar vergonha em shows

Gabriel Caetano
Revista Subjetiva
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5 min readOct 16, 2018
Roger Waters adere o #EleNão (foto: Jornalistas Livres)

Eu me lembro do dia em que você entrou num bode, quebrou minha vitrola e minha coleção do Pink Floyd”. Será que Raul Seixas tinha o dom de prever o futuro e enxergou um dos fatos mais marcantes dessa semana? Todos nós vimos notícias, artigos e vídeos sobre a vaia que Roger Waters, o cérebro por trás das letras do Pink Floyd, tomou na última terça-feira no antigo Parque Antártica, em São Paulo, após o telão exibir a já mítica frase (ou hashtag) “#Elenão”. Nem em um clássico Palmeiras X Corinthians aquele estádio tremeu tanto. Fiquei surpreso, confesso, afinal, esperava que o sujeito disposto a gastar R$800,00 em um ingresso para assistir um espetáculo desse nível, tivesse um conhecimento básico da temática abordada por Waters em sua obra — seja no Pink Floyd ou em sua carreira solo. Mas, como diria o eterno trapalhão Didi Mocó Sonrizep Colesterol Novalgino Mufumbbo, boa parte do público ficou “cafuso”.

O Rock’ n’ Roll, pelo menos na concepção que tenho desde garoto, é um dos maiores atos políticos do mundo. Nos anos 50, período pós-guerra, os jovens tinham finalmente encontrado sua voz contra a opressão de um sistema comandado por velhos burocratas, de seus pais ou até mesmo a esperança de uma vida melhor. Garotas atingiam o orgasmo pela primeira vez ao verem Elvis Presley balançar seus quadris, ao ponto de Ed Sullivan, uma espécie de Silvio Santos americano, proibir o foco das câmeras nas pernas do eterno Rei. Tanto que Coronel Tom Parker, empresário de Elvis, logo o enviou ao exército. Ele tinha que mostrar a América que era um bom menino. Garotos, em toda ebulição da puberdade, quebravam cinemas no mundo todo ao ver Bill Halley tocando os primeiros acordes de Rock Around the Clock no filme Sementes de Violência ou assistindo a sensual Jayne Mansfield dançar ao som do afetado e brilhante Little Richard em Sabes o que Quero. Era apenas o início do que talvez fosse e ainda é a maior revolução cultural que o mundo viu.

Nos anos 60, aqueles jovens que descobriram sua voz na década anterior, resolveram reproduzir as harmonias que ouviam apenas pelas ondas do rádio e formaram seus conjuntos, bandinhas de baile. Alguns foram além, como Robert Allen Zimmerman. Esse menininho nascido em Duluth, um polo siderúrgico de Minnesota, observou que a grande maioria das músicas de rock’n’roll não eram tão sérias, tratavam de assuntos óbvios e resolveu beber também algumas doses da tradicional música folclórica dos Estados Unidos feita por gente como Pete Seeger e Woody Guthrie, dono de um violão que, segundo o próprio, era uma máquina para matar fascistas. Além disso, o pequeno Robert ficou impactado com os poemas de Dylan Thomas e resolveu mudar de nome. Virou Bob Dylan e percebeu que era possível tratar dos conflitos sociais que atingiam seu país, como a segregação racial, em suas canções, seguindo o exemplo de seus ídolos do folk faziam.

Ao mesmo tempo da descoberta de Dylan, lá do outro lado do planeta, alguns sobreviventes dos bombardeios sofridos pelo Reino Unido na Segunda Guerra Mundial também se encantaram com aquele som novo feito pelos americanos. Alguns deles, na mesma década ainda, explodiram no rádio dizendo que não conseguiam encontrar alguma satisfação. Vale lembrar que os anos 60 talvez tenha sido o período de maior transformação social desde a Revolução Industrial. Havia a Guerra Fria, o medo de uma nova bomba atômica ou da ameaça comunista que dominava a China e libertou Cuba de ser apenas uma ilha onde americanos buscavam diversão. Isso não podia se espalhar por todo o globo. Assassinatos de líderes políticos começaram a ser recorrentes, regimes totalitários são desenvolvidos na América Latina e uma guerra eclode no Vietnã.

Voltando ao Rock’ n’ Roll, no Brasil, aquele som de Bill Haley e o remelexo de Elvis começou a fazer a cabeça de muita gente. Seja numa rapaziada moradora da Tijuca, Zona Norte do Rio de Janeiro, alguns filhos de operários da Mooca e ABC Paulista ou, até mesmo, garotos moradores de Salvador que adoravam o baião de Luiz Gonzaga e não se identificavam com a passividade da Bossa Nova. Inclusive um desses jovens baianos notou que havia muita semelhança entre os ritmo feitos por Elvis e Seu Luiz, tanto que, anos depois, apareceu na televisão pedindo para deixarem ele cantar o seu rock em um inglês cheio de sotaque. Por muito tempo Rock’ n’ Roll ou Iê — Iê — Iê, como chamavam por aqui, foi música de alienado. Até que em 1965, um ano após o início do golpe dado pelos militares no Brasil, um jovem capixaba mandava tudo ao inferno. Aquela simples canção narrando a saudade de um amor arrebatou o coração da juventude, seja pela novidade ou o contexto político, e não agradou o ouvido da sociedade conservadora que já habitava esse país. Nem mesmo os jovens carismáticos pertencentes a outras “facções” musicais brasileiras e, supostamente, donos de mentes abertas entenderam aquilo. Fizeram até passeata contra a guitarra elétrica. Hoje, muitos deles, não deixam de se apresentar com o tal instrumento. Na França, em 1968, estudantes resolveram lutar contra o conservadorismo e esse ato refletiu na juventude de todo mundo, cansada das velhas políticas e de assistir o sangue jovem ser desperdiçado em campos de batalha — seja nas selvas ou ruas. Foi o despertar de toda uma geração.

Tenho certeza que você deve estar se perguntando as razões que abordei todo esse contexto histórico. É simples: o Rock’ n’ Roll sempre andou lado a lado com a política e seus acontecimentos. Claro que há artistas que preferem não abordar o tema em suas obras, mas quase todos das gerações citadas acima, de um jeito ou de outro, retrataram a história e suas transformações, seja através de canções de amor ou verdadeiros manifestos, como é o caso de Roger Waters, dono de uma posição mais progressista. O heavy metal, por exemplo, surgiu como um grito de insatisfação da classe operária inglesa. Tony Iommi, guitarrista do Black Sabbath, pode te confirmar isso, afinal, perdeu boa parte dos dedos de uma das mãos numa prensa mecânica. Há também roqueiros em um campo mais conservador, como é o caso do racista Ted Nugent ou de Roger, não o Waters, mas aquele que hoje prova a teoria de sua própria canção, mostrando que, realmente, não sabe escolher presidente. Mas, lembrando Raul Seixas outra vez, aqui na terra descoberta por Cabral, nos falta cultura para poder cuspir na estrutura e, enquanto isso não mudar, fatos espantosos e lamentáveis, como o da última terça-feira, continuarão ocorrendo. Ah, se não fosse o Cabral!

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Gabriel Caetano
Revista Subjetiva

Já fui frentista, troquei óleo de carros, limpei balcões, servi mesas, prestei serviço pra multinacionais e fiz um doc sobre o blues. Agora tô aqui, escrevendo!