Ferida aberta

Perdoar é fácil, difícil é esquecer

Julia Caramés
Revista Subjetiva
4 min readOct 15, 2019

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Arquivo Pessoal

Faz mais de três meses que eu fiz uma queimadura na mão e a marca resolveu impregnar na derme de tal forma que não sai nem com doses homeopáticas de protetor solar. As marcas, assim como as grandes tempestades, sempre me lembram do desamor que não se incomoda em reaparecer na parede da memória. Parece livro empoeirado: você faz ideia de que precisa limpar e mesmo assim não consegue ir em frente sem saber muito bem porquê.

Com você não é diferente. Eu precisava tanto te contar aquelas coisas que cravaram na espinha. De todas as vezes que arrepiei a alma só de lembrar do suor. Da imagem do sol nascendo e de você sendo totalmente inesperado na estética, no encontro e na paixão. Você já sabe de todas essas coisas. Quem ficou sem notificação celestial ou só conversa fora, fui eu. A falta de explicação deixa a gente preso em um lugar do espaço-tempo que é feio, amargo e esquelético. Um sangue-suga de vampiro que não rouba carne mas envenena pensamento. É isso: acho que você me envenenou quando partiu sem dizer adeus.

Quando chove forte eu lembro de tudo e mais um pouco. Lembro de quando te conheci. Penso no “por que uma pessoa andaria mais de um quilometro a pé na chuva só pra me conhecer?”, é poético e trava no sentido quando tudo se perde no meio da fuga. Porque você é artista quando o assunto é fugir. Escorreu sei lá eu por onde, se enfiou nos buracos, se perdeu entre as nuvens. Você era tanta luz que chegar muito perto acabou me queimando. E essa marca não ficou só na pele da mão.

Nos princípios espirituais que podem partir do hinduísmo ou não, carma é crédito e darma é débito. Carma quando aparece fica igual a carta da roda da fortuna no tarot: a roda gira sem sair do lugar e a história se repete até que alguém quebre a maldita roda e destrua esses rastros de repeteco. Odeio disco quebrado. Odeio ter que repetir as coisas. Odeio esse silêncio maldito.

Eu já te perdoei. Eu também sei que forcei a barra. Tem coisas que eu fiz que você nem imagina. Passei na sua rua rezando pra topar com você na porta do seu prédio. Fui até o seu bar preferido só pra ver se te encontrava. Decorei sequências numéricas diversas com a certeza absoluta de que ia receber uma mensagem sua e dei de cara com muros. Os mesmos muros que você colocou entre nós. E aí era uma vez tudo o que eu sonhei pra a gente: a viagem pra São Conrado, a tarde no cinema, as exposições com dose dupla de drinks na sequência e eu, você e o sol. Queimando, iluminando, ardendo e machucando. Dói gostar de você desse jeito e dói sentir saudade até do que a gente não viveu na paráfrase mais cafona que eu posso encontrar.

Eu fui nua e sua. Completamente sua. Fiz e refiz tantas vezes esses diálogos que até esqueci de contar. Enumerei as palavras, o grito e até o drama. Jurei batendo esse amor no peito que eu tinha mil e um direitos de te dizer que não era justo. Não era justo você se enrolar em mim pra me afastar depois. Às vezes parece que eu sonhei, projetei e performei tudo isso sozinha. Mas eu lembro do seu arrepio, do pelo subindo e da falta de fôlego. Não venha me mentir, eu sei o que você sentiu. O que eu não sei é o que foi que te fez fugir assim. Você que tem nome e cara de anjo, mas engana bem pra despistar a tramoia que vem depois. Paixão errada sem ponto final joga a gente num limbo que só quem sofre de angústia aguda tem coragem de encarar.

No fim das contas quem machuca é a falta do adeus. O fim do capítulo, das páginas adjacentes e estranhas entre si. No dia que você voltar pra me dizer o que eu nunca entendi, esse amor vai estar mais gasto que sola do pé em sertão sem chuva. Eu te disse que perdoar é fácil, difícil mesmo é esquecer. Mas não tem amor que sobreviva a tanta porrada passiva-agressiva. Luz que invade e cega, silêncio que machuca e escuridão que entorpece. Meu coração amargou tanto que cansou de gritar no vazio. É estranho porque eu to tranquila. Beirando a apatia quando seu nome aparece. Às vezes eu acho que esqueci o contorno do seu rosto. E acho que comecei a me descolar de você justo ali.

Até você voltar, já que essa é a única certeza que histórias mal resolvidas carregam no enredo — o retorno amaldiçoado ou não — a mancha da queimadura já sumiu. Talvez essa insistente lembrança que eu tenho de você vá pelo mesmo caminho.

E dessa vez eu vou deixar.

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Julia Caramés
Revista Subjetiva

Se veio aqui procurar alguma coisa me dá a mão que eu tô procurando também