Filmografia da quarentena: Coringa

Uma insurreição popular nem sempre é progressista

Helton Lucinda Ribeiro
Revista Subjetiva
2 min readMar 26, 2020

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Joaquin Phoenix, vencedor do Oscar de Melhor Ator no papel de Arthur Fleck/Coringa (divulgação)

S ó agora, neste início de quarentena, é que vi o Coringa. Perturbador. Desesperançado. Um grande filme, sem dúvida! O que eu poderia dizer sobre a interpretação de Joaquin Phoenix que outros não tenham dito melhor? E olha que meu Coringa favorito era o César Romero (se você reparasse bem, veria o bigode dele por baixo da maquiagem).

Mas gosto especialmente da escolha de Robert De Niro para o personagem de Murray Franklin. Pareceu-me uma referência a O rei da comédia, em que De Niro é o comediante frustrado e Jerry Lewis, o bem-sucedido apresentador de TV.

Mas não são os aspectos cinematográficos que eu pretendo abordar neste texto. A reflexão que o filme me inspirou foi política.

Coringa talvez seja mais profético agora do que deve ter sido em 2019, quando chegou aos cinemas. O que vemos ali é um caos social que desemboca num paroxismo sangrento. Espero que a profecia não se realize integralmente.

Há muitas lições a se tirar da narrativa. Uma insurreição popular nem sempre é progressista. O filme me pareceu falar mais sobre fascismo do que qualquer outra coisa. O que vemos ali é uma massa aparentemente despolitizada que escolhe o personagem título do filme como símbolo.

Bolsonaro poderia ser o Coringa. Afinal, não era saudado nas ruas como “mito”? Bolsonaro nunca foi um líder, mas desempenhava também o papel simbólico de expressar o recalque de uma parcela da sociedade inconformada, no nosso caso, com avanços democráticos recentes.

As HQs de super-heróis sempre tiveram um viés fascista. Allan Moore desvelou isso de forma magistral em Watchmen. Mas também já tinha dado sua versão do palhaço do crime em A piada mortal, história que termina com Batman e Coringa às gargalhadas. Duas faces da mesma moeda.

Lembrem-se de que super-heróis aparecem para enfrentar problemas que não existiam antes deles. Nos quadrinhos, Batman é o responsável indireto pelo surgimento do Coringa (aspecto em que o filme promove uma curiosa inversão). O fascismo cria seus próprios inimigos.

Mas, no filme, os inimigos são os ricos. Frente ao descalabro administrativo, o melhor que o sistema político de Gotham City tem a oferecer é um milionário. Isso também soa profético no cenário brasileiro, com nossos Hucks, Dorias e Amoedos. Em vez de Coringa, porém, temos o Bozo (não o palhaço, infelizmente).

P.S.: eu disse aí acima que Bolsonaro poderia ser o Coringa. Não por acaso, sua família tem ligações com o Escritório do Crime, organização que bem poderia ter sido inventada por Bob Kane, mas é um braço da milícia e não tem nenhuma graça.

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