Filtro solar, premissas e um pouquinho de Terra Samba

Mariana Imbelloni
Revista Subjetiva
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3 min readAug 6, 2020

Sou de uma geração que não pode ouvir a introdução “se eu pudesse te dar só um conselho” que já vem a voz do Pedro Bial mandando a gente usar filtro solar e as lembranças de umas pistas de dança meio duvidosas por aí.

Acontece que a agora uma boa parte dessa geração tá bem longe do sol — ou a parte dessa geração que pode estar — aqui em casa pelo menos só bate vinte minutos por dia nos dias de sorte, então, Bial, não tá servindo muito seu conselho, querido.

É engraçado falar isso de “sou de uma geração” porque dá um senso de pertencimento etário que a digitalidade dissipou, todo mundo pode estar na sua bolha, encontrar sua tchurma e etc, como se por encontrar formas de pertencimento mais sutis se abrisse mão de precisar conversar com qualquer outro grupo. Mas eu creio firmemente que é só soltar um Terra Samba que a gente se entrega — ah, os anos 90.

Porque pertencimento é sobre referências. E também sobre a partilha de certas premissas.

Agora com mais recortes, sou de uma geração que não consegue passar dez minutos do dia sem se perguntar como que as coisas deram tão errado. A gente cresceu em um momento de democracia aparentemente sólida, expansão da universidade pública, dava para se dizer “criticando à esquerda o governo” sem que isso fosse uma redundância óbvia. Como que agora eu tenho que salvar o The New York Times de ser comunista?

Mas aí eu penso nas bolhas, no Terra Samba e até no Bial. Para gente dançar na mesma pista, tem que ter um mínimo de música comum. Referência comum não é coisa evidente. Nem descartável. Se a gente não cuida de ter um mínimo chão partilhado, um vocabulário comum, a gente começa a falar para cada vez menos gente. Até falar sozinho, achando que é para uma multidão.

No amor e na política os erros se repetem: ter algo como dado.

Tem que acordar todo dia, lembrar a pessoa que você a ama, e que anarcocapitalismo é uma contradição em termos.

Não, nem isso, porque a gente tem que lembrar o que é o anarco e o que é o capitalismo para fazer isso. E é disso que tô falando.

Tomamos como dado tanta coisa, deixamos de disputar as premissas de outras tantas, que agora vivemos uma babel invertida. Todo mundo fala a mesma língua, mas ninguém se entende.

Fui falar no Bial e lembrei que o livro dele sobre a cobertura da queda do muro de Berlim foi um dos motivos que me fez querer fazer jornalismo. Eu queria estar presente na queda dos grandes muros e falar sobre isso. Mas quase nunca penso nisso porque Bial não envelheceu bem como referência & não durei na faculdade de jornalismo.

Acho que eu queria mesmo era entender como evitar a construção de muros, mas do que vê-los caindo.

A gente nunca vai estar livre da possibilidade dos muros.

A gente nunca vai ver a queda definitiva.

Mas tem um trabalho constante, jovens.

Muitos anos, caminhos e Biais depois, talvez a única coisa que tenha ficado bem certa disso tudo é: a gente nunca pode parar de disputar as premissas.

Se eu pudesse te dar só um conselho é esse: dispute premissas.

Todo dia.

(também leve um café na cama uma vez por semana & use filtro solar quando sair porque né, bom reter o aprendizado)

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Mariana Imbelloni
Revista Subjetiva

escrevendo como quem lança garrafas ao mar // Livro: “O fio invisível dos dias” (Editora Urutau, 2020) & "ainda estou partindo" (Patuá, 2022)