Fleabag, Breaking Bad e a recepção do público masculino

A primeira temporada de Fleabag é tão incrível quanto a segunda se você deixar

Yann Rodrigues
Revista Subjetiva
11 min readAug 11, 2020

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Phoebe Waller-Bridge como Fleabag

Esse texto nasce de uma noite mal dormida. Aquela noite em que você tem sonhos estranhos, acorda antes da hora, está tudo escuro, e a sua mente entra em um buraco de minhoca. Considerações sem fim sobre coisas que não terão nenhuma importância no seu dia vindouro.

Você simplesmente sabe que não vai dormir de novo enquanto não tirar essa torrente de pensamentos da cabeça.

Eu só quero que você saiba que é esse o contexto que dá origem a esse texto. Não o coloco no meu site de costume, o Além do Roteiro, pois esse não é um estudo sobre uma narrativa, uma técnica, um conceito. Estou em meu modo reclamão. Nesse modo, quero cuspir marimbondos completamente atrasados sobre uma coisa. A recepção de homens à 1ª temporada da série Fleabag.

Fleabag

Eu assisti Fleabag em 2019 e fiquei estarrecido desde o primeiro episódio. Aquilo era simplesmente genial. Fantástico. Foi ver o primeiro episódio e chamar a Pati, minha companheira, pra entrar naquela série comigo. Detesto maratonas de séries incríveis, que merecem seu tempo de digestão, então em alguns dias, com o máximo de autocontrole que conseguimos, passamos pelos doze episódios e duas temporadas que constituem a série criada por Phoebe Waller-Bridge, conhecida também como dona e proprietária da porra toda.

Foi começar a compartilhar a experiência de assistir àquela série maravilhosa para ter a recepção de outras pessoas — e de outros homens — como comparação.

A segunda temporada é genial. Mas ela é mais que genial. É unânime. Todo mundo ama a comédia romântica com o “hot priest” e as sacadas inventivas para a quebra da quarta parede.

O Padre em Fleabag

A primeira temporada também é genial. Mas isso sou eu falando, e uma maioria das mulheres que ouvi. Para muitos homens, ela era boa, muito boa talvez. “Mas não é como a segunda temporada”. Eu não tenho uma pesquisa, dados, um infográfico lindo com eixos manipulados, para provar que essa foi a recepção de todos os homens. Só estou me baseando no que ouvi no meu círculo — e pode já estar óbvio, mas são homens cis héteros, brancos na maioria. Só pra estabelecermos o recorte.

Bom, de fato a primeira temporada não é como a segunda. Elas se propõem a trabalhar gêneros diferentes. Mas tô me desviando aqui. Isso não a faz pior. Não vou justificar por que a primeira temporada de Fleabag é genial, mas é.

O que me pega, o que me faz cuspir marimbondos com 1 ano de atraso — na pandemia o tempo é relativo e esses atrasos são aceitáveis, não são? —, é a justificativa que escutei desses homens para não sentirem o mesmo pela primeira temporada.

Diferentes palavras, mas era sempre uma ideia, que vou resumir entre aspas, mas que não foi a fala exata de ninguém, tá bom?

“A primeira temporada é boa, mas assim, não é igual a segunda. Acho que por eu ser homem, não consigo me identificar da mesma forma que as mulheres com as questões dessa temporada”.

Huuuummmmm. Tá. Temos algo a pensar aqui. Aliás, finalmente chegamos ao motivo do texto. Eu sei que tô dando voltas.

Então o gênero esteve no caminho da recepção desses homens para a obra. Gênero sociológico aqui.

A primeira temporada não traz uma questão tão universal quanto o amor na segunda temporada.

*tosse LUTO tosse*

Ela traz. Mas tem muita coisa ali que é específica de mulheres né. Tipo, feminismo. Palestra sobre feminismo. Sutiã. Depilação.

Eu tô bem chato. São 5h35 agora, acordei 4h30, me dá um desconto.

De forma não irônica, o que essa ideia está falando é: esses homens não tem a vivência de várias das questões que Fleabag passa na primeira temporada. E por isso não se identificam tanto.

Eles não viveram as mesmas situações ou conflitos que Fleabag, afinal eram situações ou conflitos específicas da feminilidade. Sem essa “vivência compartilhada”, os homens estão limitados no quanto eles conseguem empatizar com essa protagonista, se identificar, torcer.

Faz sentido, não faz? Não faz????

Finalmente a tese do texto: não faz sentido.

Essa justificativa é uma muleta. Ela já está presente no imaginário do homem antes mesmo de rolar o play no episódio piloto de Fleabag. Como uma profecia autorrealizável, a identificação não rola e a muleta surge.

A minha evidência para isso ser frágil é simples. Eu não me senti assim.

Tá bom, tá bom, eu não sou o centro do mundo. A exceção confirma a regra. Bla bla bla. Eu vou chegar no ponto em que não sou mera exceção, mas, por agora, meu foco é: eu sou homem cis hétero, não tenho a vivência de uma mulher na posição de Fleabag. Mesmo assim, eu senti uma torcida absurda pela protagonista já na primeira temporada. Uma identificação, uma empatia, algo que talvez seja melhor definido pela palavra “compelling”. Ela não tem uma boa tradução para quando se fala em “compelling protagonist”, mas sua tradução tosca até resumiria bem o que eu sinto. Eu me sentia compelido a acompanhar a trajetória daquela mulher na primeira temporada. Completamente fisgado.

Como isso é possível se eu não tenho a vivência necessária para isso?

Pois chegou a hora da antítese, o momento que te despertou curiosidade desde o título que eu sei. Hora de Breaking Bad.

Walter White, ou Heisenberg para os íntimos

Eu vou te dar uma nova chance de fechar esse texto. Eu odeio Breaking Bad.

Pronto, falei. Agora as ressalvas.

Breaking Bad é genial. É uma obra-prima.

Não tem volta a dar nisso, simplesmente é.

Mas eu odeio. A experiência de assistir Breaking Bad foi maçante para mim. Eu não senti nenhuma identificação, nenhuma empatia pelo protagonista Walter White. Ele só me causava repulsa. Eu sei que você quer me dar uma banda de argumentos psicanalíticos nesse momento… Sinto muito, isso é um texto e esse é o meu momento, os comentários tão aí.

Eu entendo que Breaking Bad tenha despertado tanto clamor. Falando com generalização mesmo, tudo ali é feito com brilhantismo.

Ainda assim, não era para mim.

O piloto de Breaking Bad faz uma coisa que só pode dar certo se for muito, muito bem feita. Ele toma seu tempo para que as coisas aconteçam.

Por cerca de 20 minutos, com exceção do teaser (a primeira cena da série), só vemos Walter sendo humilhado. Por Hank, pelos alunos, pelos chefes, principalmente por Skyler. Vemos quão longe ele está do que poderia ser com seu intelecto. Vemos ele descobrir um câncer terminal.

Walter White, Skyler e Walter Jr em Breaking Bad

Breaking Bad nos levará em uma jornada de um pessoa execrável, um protagonista vilanesco, que mergulha em suas falhas com uma profundidade muito além do que imaginávamos logo no início. Para tornar possível acompanharmos essa trajetória, Breaking Bad nos dá 20 minutos de uma das maiores sequências de humilhação e emasculação das narrativas.

São 20 minutos construídos para empatizarmos com Walter, nos identificarmos com ele, e, dessa forma, justificar tudo que vem depois. Em suma, é isso. Uma justificativa para a derrocada de Walter White.

Aí eu me pergunto: por que tanta gente se identifica tanto, empatiza tanto, com essa narrativa?

Bom, Walter White representa uma série de medos e dilemas da identidade masculina padrão. A necessidade de prover. A ânsia por poder. A competição com os pares. O peso das derrotas, a associação entre sucessos e a própria honra.

Tudo isso alimentado com o medo da morte, o luto pela própria vida. São questões bem universais acopladas a questões bem masculinas. E sim, as questões masculinas são tratadas como universais pela cultura, mas vamos chamá-las pelo nome aqui: masculinas.

Enfim… eu sou homem. Então, seguindo o raciocínio que limitou a recepção de muitos homens da primeira temporada de Fleabag, eu deveria ter empatizado e me identificado muito com Walter White.

Afinal, eu “compartilho” com ele a “vivência” de ser homem.

É aqui que a minha proposta de antítese chega em seu momento-chave. A definição de vivência que a cultura tem carregado está atrapalhando.

Nos acostumamos a tratar vivência como essa coisa etérea compartilhada por grupos sociais, especialmente por minorias no campo sociopolítico. É uma definição útil para o dia-a-dia, mas que cria certas limitações que aparecem na superfície em questões como a desse texto.

O livro “Sociedade do Cansaço”, do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, não teria nada a ver com esse texto. Contudo, o Anexo 1 do livro ele fala sobre vivência. Citando outro autor, Richard Sennet, ele escreve:

O narcisista não está afeito a experiências, ele quer vivenciar — em tudo com que se encontra ele quer vivenciar a si mesmo.

Buyng-Chul Han continua sua própria exploração dizendo:

Na experiência, encontramos o outro. Esses encontros são transformadores sim, nos modificam. As vivências, ao contrário, prolongam o eu no outro, no mundo.

Os grifos são do próprio filósofo. Sim, eu precisei levantar da cama, agora depois das 6h, para pegar essas citações.

o livro Sociedade do Cansaço

Não precisamos nos estender em por que o filósofo estava falando sobre o narcisismo. Podemos seguir apenas com o que ele fala da vivência.

A vivência é algo bem específico. Na verdade, único. Afinal, a nossa vivência é composta por… bem, por tudo que vivemos. Nossos genes, experiências passadas, aprendizados, cultura, tudo faz parte da nossa vivência. Ela é formada de uma rede tão complexa que só pode ser única na soma de seus elementos.

A partir dessa complexidade, sabemos que nenhum ser humano tem uma vivência exatamente igual a de outro ser humano. No máximo, temos vivências parecidas e, com base nessas semelhanças, essas vivências são “compartilhadas” nos grupos.

Com personagens, uma coisa curiosa acontece, pois personagens não são pessoas. São representações de pessoas, na maioria das vezes. No entanto, em termos de vivência, os personagens são extremamente limitados. A partir das informações que a narrativa nos fornece sobre eles — de seu biotipo à suas ações à sua biografia — , nós completamos a ideia que temos desses personagens pelo nosso próprio processo de identificação. Isso porque, diferente de pessoas, os personagens permitem. Há espaço para fazer esse “preenchimento de lacunas”.

Com isso, nós “sentimos” que temos a mesma vivência de um personagem. Mas o que estamos fazendo de fato é nos projetando sobre o personagem e completando a vivência dessa figura representativa com a nossa própria vivência. Voltando a Byung-Chul Han:

As vivências, ao contrário, prolongam o eu no outro, no mundo.

É impossível não nos identificarmos com a nossa própria vivência.

A vivência é muito útil em contextos de discussão sociopolítica, de acesso a espaços de poder, oportunidades de mercado. A falta de certas “vivências” nas telas de grande alcance, nos horários nobres, no imaginário do grande público, é um problema e um alerta que tem nos direcionado para a criação e o consumo de mais histórias com as vivências “diversas”. Isso é ótimo, excelente. Mas é uma discussão macro, de mercado.

No micro, no individual, a vivência é única e, portanto, limitadora.

A armadilha é que o elemento mais bobo pode impedir que façamos esse mesmo movimento de projetar a nossa vivência em um personagem. Algo bobo como… o gênero.

Acho que estamos caminhando para a síntese. Aeeee.

Gênero não é algo bobo, claro. Voltando a Breaking Bad, se eu “compartilho” a vivência de ser homem com Walter White, por que não me identifico com ele?

Porque esse é um elemento muito frágil de identificação. Eu consigo compreender a trajetória de Walter White, mas eu não compartilho com ele boa parte de suas experiências. Cada passo que ele dá com as decisões que toma ao longo da série só tornam suas experiências ainda mais distantes das minhas.

Basta não fazer a projeção de si sobre Walter White para ficar evidente que o personagem justifica todas as suas falhas, em especial seus comportamentos tóxicos e estereotipicamente masculinos, com aqueles 20 minutos de humilhação no início. Sinto muito Walter, mas esse papo não é para mim.

Tudo bem que seja pra você e você tenha conseguido se identificar com ele. Tudo bem mesmo. Narrativas são poderosíssimas em conseguir isso.

Mas aí voltamos a Fleabag. Quando Fleabag e sua irmã Claire levantam a mão em uma palestra feminista, sendo as únicas que respondem que trocariam 5 anos de suas vidas por um corpo “padrão”, essa é uma vivência distante de mim. Eu não sou uma mulher, não sei o que é sofrer o nível de pressão estética que uma mulher sofre, estou limitado ao nível que um homem sofre, muito diferente e menor.

Mas voltando a Byung-Chul Han, a experiência é o encontro com o outro e é transformadora. Eu posso ser transformado pela experiência de Fleabag, se eu não tiver feito da minha própria vivência uma restrição baseada em nossos gêneros diferentes.

Sem criar essa barreira, eu posso olhar para as outras experiências de Fleabag e até, quem sabe, encontrar experiências de encontro, em comum.

Eu já citei o luto como uma das questões universais da primeira temporada. Também tem o conflito com a falta de dinheiro, a falta de rumo em um negócio e na vida, o sentimento de total falta de pertencimento, até a sensação de culpa que na série anda ao lado do luto de Fleabag.

Eu posso me identificar com uma ou várias dessas questões universais. Posso empatizar com Fleabag a partir delas. Posso me abrir para as outras experiências que seriam de outro modo impossíveis para a minha vivência.

Afinal, quando um homem se identifica com James Bond, ele está se abrindo a experiências do outro, experiências muito distantes da vida do homem comum, a partir da proximidade da vivência de “ser homem”.

Olhando objetivamente, eu estou muito mais próximo das experiências de Fleabag do que das experiências de Walter White ou do James Bond. Então, para mim, faz muito mais sentido que eu me identifique primeiro com ela.

Acabou? Quase. Falta eu voltar a um ponto, a exceção. Eu disse que não deveria ser encarado como mera exceção pela minha recepção da primeira temporada de Fleabag, certo?

Digamos que um desses homens dos quais escutei a opinião dissesse que não se identificaram com Fleabag por conta das experiências. Não conhecem uma situação de luto como aquela, se sentem pertencentes em suas famílias e trabalhos, ou simplesmente que não pensam o mundo da mesma maneira que a personagem, como acontece entre mim e meu desafeto Walter. Eu não teria o que falar.

Quando eles disseram que não se identificavam tanto, pois eram homens…

… bem, a contradição a essa ideia está, no mínimo, em metade da população. As mulheres, afinal, foram forçadas a se identificar com protagonistas masculinos por praticamente toda a história das narrativas, não é? Narrativas que muitas vezes focavam em questões masculinas e uma cultura que colocava essas questões como universais.

Elas conseguiram fazer isso por milênios e seguem fazendo. A novidade agora é que nós homens podemos fazer o contrário, nos identificar com personagens mulheres vivendo suas próprias questões.

Será mesmo que a gente não consegue?

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