Fogo na tabacaria

Cecilia Santos
Revista Subjetiva
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2 min readJan 2, 2020

Fiquei abismado com a notícia: a tabacaria tinha sido assaltada, o seu Alves reagiu e foi assassinado. Demorei a assimilar o significado da informação. Como assim assassinado? O seu Alves, dono da tabacaria, era o morador mais antigo do bairro, eu o conhecia desde pequeno. Ele não podia estar morto.

Achei que só podia ser engano. Resolvi ir até a tabacaria para ver o que realmente tinha acontecido. Já na esquina, vi as patrulhas policiais. O corpo estava lá dentro, coberto por um lençol rodeado de velas. Havia tanto sangue!

Percebi ali que a cidade mudou. Lembro hoje da vez em que, ainda moleque, havia entrado na tabacaria para comprar cigarros. Eu e alguns amigos tínhamos juntado uns trocados para fumar nosso primeiro maço, como era a moda daquele tempo. Eu tremia na presença daquele homem, gaguejei ao pedir os cigarros, disse que eram para o meu pai. O seu Alves me olhou desconfiado, mas entregou-me o maço com um sorriso e a recomendação:

- Entregue direitinho na mão do seu papai!

Confesso que minha consciência doeu. E é estranho como a dor na consciência das crianças passa mais depressa. Logo em seguida, eu saí correndo para me encontrar com os outros, fumamos o nosso primeiro cigarro, entre tossidas e gargalhadas.

Tempos depois meu pai descobriu que eu estava fumando; me levantou pela orelha e me fez dizer onde estava conseguindo os cigarros. Então me carregou pelo braço até a tabacaria. Ainda me lembro do olhar decepcionado do seu Alves para mim quando meu pai lhe contou sobre o que estava acontecendo. Os dois começaram a me dar um longo sermão, que era ponteado por beliscões do meu pai.

Hoje, sou um homem feito, já tenho filhos. Entendo a preocupação daqueles homens. Vivo tentando parar de fumar enquanto convivo com fantasmas de câncer e enfisemas. E aquela tosse que não passa…

Vendo o cadáver do seu Alves, essa lembrança me vem doída. Ele era um homem digno, parecia eterno atrás daquele balcão. E ele não fumava. Parece mesmo que as coisas mudaram. Boa era a época em que eu acreditava que o cigarro acabaria me matando. Agora, já nem sei mais. Por via das dúvidas, vou continuar tentando parar de fumar. E vou ver onde está meu filho agora.

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Cecilia Santos
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degustadora de palavras. com mel. com cachaça. com pimenta.