Força

Isa Silveira
Revista Subjetiva
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6 min readJul 6, 2020
Divulgação: Danille Dolsen

A tempestade era tão forte que tornou-se difícil ver muita coisa do lado de fora. Chegou ao ponto em que, de tão intensa, as portas também precisaram ser fechadas. Foi o pai quem fechou as da casa de Maya, depois olhou carinhosamente para ela e disse:

“Vai passar. Força.”

Mas a criança, em fase de crescimento, não sabia bem o que era essa força. Havia assistido filmes e desenhos sobre pessoas inabaláveis que salvavam outras pessoas e eram chamadas de super-heróis, então pensou que talvez fosse isso.

No dia em que as portas se fecharam, a casa de Maya, dividia com o pai e a mãe, os irmãos e as irmãs, foi tomada por muita agitação — gritos, choro, correria, e, gritando mais alto do que tudo, silêncio. Maya queria muito poder sair porque tinha coisas que queria ver lá fora, mas, dada a ordem, foi para dentro, e sentiu aquela coisa que dá no coração quando você vê quem ama se entristecendo; por isso foi no quarto, o pequeno cômodo que era só dela, procurou aquele seu pano vermelho e o amarrou no pescoço para virar uma capa. Pegou um pouco da maquiagem que roubara da mãe e pintou um sorriso dos grandes. E foi para a sala, chamou os irmãos e disse que ficaria tudo bem, e tentou fazer eles sorrirem.

Falava alto porque tinha que ser mais alto do que o seu silêncio.

Virou rotina: acordava, colocava a capa e pintava o rosto, saía do quarto deixando a porta fechada, e ia ficar com os outros na sala. Tinha dias que queria ficar a sós no quarto, mas não se permitia, sentia-se egoísta só de pensar. Vez ou outra olhava para o pai para tentar descobrir se estava orgulhoso dela, só que o pai nada falava e apenas expressava — não parecia orgulhoso, não. Embora triste, a criança continuou tentando.

“Força”, disse o pai de novo, passado o primeiro mês de tempestade. “Quero que seja forte”.

A adolescente, em fase de crescimento, já tinha visto filmes e séries em que os personagens precisavam se conter ou reprimir sentimentos para enfrentar desafios ou tomar grandes decisões. Ainda não tinha certeza do que era força, mas imaginou que tivesse a ver com estar erguido o tempo todo.

Continuava usando a maquiagem da mãe para pintar o rosto todos os dias, agora sem mais a capa. Pai e mãe estavam sempre na sala, só que nem sempre todos os irmãos estavam ali. Perguntava sobre eles: alguns preferiam ficar no quarto, alguns caminhavam separados pela sala, alguns precisaram sair. Caíam gotas do teto, por isso não era tão convidativo estar fora do próprio cômodo. Maya, quando encontrava gente ali, dava o máximo que podia para ser forte e segurar as mãos deles, embora quisesse — tanto! — ficar no seu quarto.

E acabou acontecendo: não conseguia sair lá de dentro em alguns dias, e às vezes, quando saía, se esquecia de passar a maquiagem. Como não era forte nesses dias, evitava olhar para o pai, com medo de sua crítica, ou para os irmãos, temendo que perguntassem o que acontecera, porque achava que era ela quem devia fazer o papel de cuidar deles, não o contrário. Com o passar dos dias, cada um carregando a notícia de que mais irmãos precisaram sair pela porta que só podia ser aberta do lado de dentro e de outros que passavam cada vez mais tempo no quarto, aos poucos Maya não se sentia mais confortável em ficar na sala, porque praticamente só ela e o pai expressivo e a mão carinhosa ficavam ali, e de certa forma ela não queria ver o rosto de nenhum dos dois.

“Força, Maya”, o pai disse certo dia. “Você precisa ser forte”.

Mas Maya, exausta de preocupar-se em colocar a maquiagem ou não, de ver os irmãos saindo sem horário marcado e de tentar olhar os que ficaram nos olhos, exausta principalmente de tentar ser forte, explodiu com o pai: “Não sei ser forte! Arrume outra pessoa para fazer isso!”.

Voltou para o quarto e trancou a porta. Maya tinha a chave dos quarto de vários dos irmãos, mas a dela, só ela possuía.

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Ao terceiro mês de tempestade, a porta de Maya encontrava-se quase tão fechada quanto a porta de entrada da casa. De vez em quando saía, só para ver como os outros estavam, porém, por mais que visse alguns de seus irmãos por ali em tais ocasiões, não via seus rostos — às vezes se esquecia de fazer isso, às vezes não conseguia, e às vezes até optava por não fazê-lo. Gotejava ainda mais do lado de dentro das paredes, ao ponto de o pai e a mãe colocarem baldes e portes para, no mínimo, aproveitar algo da água escura. De vez em quando a mãe limpava o que respingava do lado de fora do recipiente, e o trocava quando enchia, mas em nenhum momento Maya viu qualquer um dos dois tentando conter o vazamento.

A maquiagem, quase esgotada, não era muito usada. Assim, em um dia na terceira semana do mês, um dos vários em que Maya ficou dentro do próprio quarto, a mãe bateu à porta pedindo para entrar por um instante.

“Você pode me devolver minha maquiagem, por favor?”, pediu.

Maya ficou com vergonha: “Desculpe ter pego, queria deixar vocês contentes”.

“Eu sei, querida”, a ternura da da mãe era profunda, “mas não é você quem deve usá-la, e ninguém aqui espera ou deseja que você use isso. Deixei a maquiagem para mim, que sou mais velha, e você trate de não mostrar mais do que seu próprio rosto, está bem?”

Maya concordou, sem entender, porém, o que tornava os mais velhos diferentes para eles precisarem usar a maquiagem.

“Posso deixar a porta aberta?”, perguntou a mão ao pôr-se de saída.

“Deixe fechada”, Maya pediu, “que vou trancar de novo”.

A mãe, embora não tenha discutido, não deixou o cômodo sem reforçar uma pergunta na cabeça da garota: “O que é ser forte para você?”

E a jovem adulta, em fase de crescimento, não respondeu, pois não fazia ideia do que seria.

Os dias se passaram e Maya viveu o resto da semana sem sair nem uma só vez do quarto. Por mais que sentisse falta lá de fora, dos pais e dos irmãos, hesitava em ir vê-los por achar-se desconectada deles, e no fim acabava mantendo a porta trancada. No último dos sete dias recebeu um nova visita: dessa vez era o pai quem pedia para entrar, mesmo sabendo que a filha continuava aborrecida com ele. Bateu na porta três vezes até ela — receosa em precisar ouviu sobre força de novo — permitir sua entrada.

“Me desculpe. Vinha te pedindo para ser forte e nem me dei conta de que ainda não havia tido tempo para aprender o que é isso de fato”.

“Vai me dizer agora?”

“Não; se te disser, não irá aprender. Nesse tempo todo que passou dentro do quarto, ainda não descobriu?”

“Não…”

“Não faz mal. Algumas coisas simplesmente não podemos aprender sozinhos. Seus irmãos também estão aprendendo, alguns já aprenderam; por que não vai visitá-los?”

“Acho que não me aceitariam, pois há tempos não os deixo entrar aqui”.

O pai sorriu grandiosamente. “Maya, que bom, porque agora você pode compreender que a questão não é em qual quarto você entra, e sim quem deixa entrar no seu. O fato de ter se esquecido disso por um momento não te faz deixar de ser irmã deles. De fato, talvez seja uma irmã ainda melhor agora”.

“Ainda não aprendi nada”.

“Mas já aprendeu tanto”.

De repente o pai parecia maior do que antes. Ele abriu uma fresta da porta, sem tirar o sorriso do rosto. Não deu para ver se na sala continuava caindo água do teto, mas sim que as luzes dos quartos dos irmãos estavam acesas, uma vez que suas portas encontravam-se abertas. “Dê uma olhada. É bom saber quais os abrigos estão no caminho enquanto estiver no casulo, porque talvez ainda esteja chovendo quando você sair”.

“Preciso ir agora?”

“Quando quiser. Mas, Maya, não entenderá nada de verdade se não sair”. Antes de retirar-se, o pai concluiu: “Obrigado por ter me deixado entrar”.

Maya não pediu que fechasse a porta desta vez. Gostou da visão que ganhou com a fresta. Após o seu tempo, saiu — ainda não estava pronta, entretanto, decidiu que ficaria no caminho. Viu os irmãos de verdade novamente, contemplou seus rostos e ouviu suas vozes, e, quanto mais os tinha, mais entendia qual era a força de que precisava e mais se alegrava por já possui-la.

Sentia vontade de contar aos que ainda procuravam, mas não podia. Talvez a sua não servisse para eles, e acabaria estragando toda a jornada.

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Isa Silveira
Revista Subjetiva

Escritora de contos, fantasia e pensamentos aleatórios. Uso a palavra escrita para em prol de um mundo melhor. Textos em português e inglês.