Fotografia: O auto-retrato como potência.

Matheus Morais Inácio
Revista Subjetiva
Published in
4 min readApr 14, 2020

[Textos do diário da peste ou quarentena.]

Bom, é de se iniciar tirando o apocalipse da sala. É sabido por todos — não aceito por alguns imbecis — que, agora, nesse presente que vivemos, é tempo de uma reclusão bizarra, o isolamento, a distância física, umas doses de desespero. É instituído um modo de viver, só ficar em casa, que é incomum. Longe de ser o “sentimento de uma pessoa caseira”, é de voluntariamente em prol da vida de pessoas do mundo todo e a sua, que fique em casa. Dentro de casa e fora de casa são duas formas muito diferentes de viver, agora.

Tenso.

E nesse isolamento, hei a vida de continuar vivendo e vivida ainda. Relacionamentos muito mais próximos, estar sozinho de forma mais veemente, famílias distantes e agora próximas. Algumas coisas estão num estado incomum, essa é a parada. Tenho dito muito nas minhas sessões terapêuticas que parece estamos sob estado de uma “hipersobriedade”, concentrados muito na gente, nos entreter com nós mesmos, viver o constante caminhar entre pensar sobre surtar e de nos atenuar desse pensamento, realidade demais pra controlar. A dinâmica é outra.

Dito sobre as condições, restaurou essa vontade de expressão que matura faz anos n’algum canto da minha cabeça. A fotografia sempre foi algo intimista, fluida, introspectiva e imaginativa. Mas também solitária, tentar fotografar o tédio ou o que nasce do tédio, do ócio, da epifania. Depende muito. Uma câmera é um objeto disparador, isso coage a gente. Nesses momentos de solidão, havia eu, uma câmera e uma casa. Uma hora as imagens da casa cansam. A vontade de tentar captar ou criar ainda existe. Tenho eu. E foi de um momento desses em que propus como corpo de mim mesmo, ou seja, máquina potente de criação. Percebia que naquele contexto, naquele olhar, naquele momento eu poderia desenhar a forma do meu corpo, falar sem palavra, de mim pra mim. De mim para o meu desejo.

Me encanta desde quando aprendi sobre a possibilidade do meu autorretrato que é mágico o quão perto pode-se chegar de por seu próprio olha no olho da câmera pra tentar saber como é se ver pelo outro, mas, sem a necessidade do outro estar ali, pelo menos em corpo. O autorretrato, a primeiro momento, puxa para uma visão de reflexo, de se ver, de olhar aquele corpo já feito, e a potência de gênese, criação, é esquecida. O autorretrato pode expressar uma pintura sem tintas, um desenho sem grafite, uma música sem som, da direção de um ser só. É inventivo, criador, não só num sentido mimetista, a sombra que copia o corpo.

Corpo nunca fora uma palavra tão usada em tantas nuances e, hoje, há quase um sentimento de ansiedade a se falar de corpo. Nos padrões, nas mudanças, no funcionamento, na pele, na fisiologia, na arte. Poder tentar experienciar usufruir do que constitui o ser humano, não tendo um corpo, mas, sim, sendo o corpo com toda a expansão que poder, dá possibilidade, não necessariamente, a pelo menos a visão de que se pode construir o modo de estar no mundo.

Vivien Mayer.

Um autorretrato tem uma filosofia única, ego e narcísica que não consigo dizer se é certa ou errada, se é que possível, mas é interessante. O conceito de “eu” é interessante. Assustador, mas interessante. Não à toa, “selfie” foi a palavra escolhida do ano de 2013.

Não há necessidade de beleza, há necessidade de criação de beleza no sentido mais amplo que é possível para um conceito. Eu compreendo que há uma estranheza, onde permeia o bizarro — pelo menos a meu caso — de sentir comigo mesmo o sentimento curioso do tal “vale da estranheza”. É um movimento de atravessar o ridículo da própria plateia criada. Um movimento de autonomia da aceitação do querer se conhecer.

autoretrato meu // instagram.com/moraisx

Nessa quarentena sem um fim muito nítido, explorar a si próprio como pessoa não só produtiva — termo que reina — mas, criadora, construtora, sem uma burocracia do sensível, usufruindo do corpo como entretenimento de si mesmo. Na fuga das crises existenciais que rondam a todo momento e, sim, angustia. Vejo como potência, inclusive, de tentativa de cuidado com saúde mental, onde com tanta coisa sendo feita a se engolir goela abaixo, vomitar expressões torna-se alívio.

Experimente a si próprio.

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